Revista da Academia Paraense de Letras Agosto 1953

" in:VJSTÁ DA - ,ACADEMIA· P:t\RAENSfi: Dljl LE'. CR.AS Entre os· Vivos· e os Mortos ,/ PÉRICLES MORAIS. (Presid~nte da Académia Amazonense de Letras) A distância de cinco décadas, se·me hão falhava os: c~lculos meno– mônicos, já no declinar do século XIX, na cidade de Belém, numa das reuniões do Apostolado Cruz e Sousa, grêmio literário de duas dúzias de rapazes idealistas, foi que eu conhécí Mecenas Rocha. Naqueles tempos remotos, êle era uma figurinha singular de aqolesc~nte, que dava a lem– brar, pelos seus elans frenéticos e pela temperatura de sua sensibili– dade, um outro Bolorec, egresso das páginas trepidantes do "Sebastien Roch", de Mirbeau. De compleição atlética, glabro, sóbrio·e ensimesmado, as linhas severas de sua fisionomia acusavam-lhe o ·espírito autoritário, estimulado por firme energia de vontade. Seus olhos esquadrinhadores e fusilantes, que pareéiam despedir chispas, infiltravam-se na alma dos companheiros, como se estivessem ·a .descobrir-lhes as intenções ocultas _e maléficas. Suas atitudes corajosas fizeram-no temido e respeitado. Por isso, a sua presença no arraial dos, jovens icondêlastas,- idólatras fanáti– cos de um só culto, o do poeta negro dos "Broquéis" valia por um surto de vitalidade e renovamento nas suas extravagantes concepções estéticas. Atraira-o Guilherme Sales, um dos vexilários do Apostolado, .bisonho •r~rtarin marajoara, caçador de águias implumes, que reconhecia nêle, nao obstante o verdor dos anos além do instinto especulativo, uma das inteligências mais perpicazes de sua geração. Com a virtude de alheiar– se das coteries inconsequentes e com o vício dos livros, adquiridos à custa d_e penosos sacrifícios, Mecenas parecia deslocado de sua época. Decor– ridos mais de dez lustros, através desta visada retrospectiva que os milagres da memória me conduzem por entre as brumas do passado, estou a vê-lo com a mesma exuberância de entusiasmo com que outróra lhe aplaudíamos as epigramas courtelinescos, desferidos contra os bon– zos literários, explodindo quais morteiro arrazadores no casarão sola– rengo da rua Doutor Malcher, na Cidade Velha. Entrineheirando-se conosco naquela furna de beluários inofensivos, a inconsciência dos seus anos juvenis não poupava siquer os velhos e gloriosos padrões da nacionalidade, achincalhados com insólita irreverência pelo "Oráculo" porta-voz desabrido daqueles pseudo-simbolistas, imbuídos do falso pressuposto de que a destruição sistemática era o processo mais facil para a escalada da glória. Em um dos capítulos do meu livro "Legen– das & Aguas-Fortes", no ensaio consagrado ·a Gonzaga Duque, com o coração repassado de amargura, evoquei essa fase efêmera dos passos iniciais de minha vida literária epilogada com a dispersão dos inolvidá– veis gladiadores do Apostolado. Premidos pelas contingências da vida, que lhes determinavam os roteiros inflexiveis, cada um seguiµ o seu caminho, já lhe sentindo o travor dos desaleritos, embora ainda com a alma apoquentada de utopias. Do Apostolado resta apenas a lem~;-a!)ça cor_novida. Não sei bem se algun~ . dêsses malog_rados fa– lang1anos do ideal foram favorecidos com o be1Jo da fortuna. A ma– ioria, estou certo, desapareceu, arrebatada pela morte ; e os outros sossobraram irremediavelmente nas ondas encapeladas do alto mar da existência. Nem eu mesmo, dos seus arautos .o mais ar~ente, supondo galiar de um salto o cimo da montanha, logrei escapar a tormenta en– funada. Salvou-se apenas Mecenas da Rocha, cujas admiráveis ati– tudes morais e intelectuais o sobrelevaram às iniJJstiças d<;>s homens e às d ecepções _do destino, transfigurando-o no s1mbolo vivo de uma extinta geraçao d e sonhadores.

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