Revista da Academia Paraense de Letras Agosto 1953

tl6 REVISTA DA ACADEMIA PARAENSE DE LETRA!> que se quer hoje deformar a realidade em benefício de um sensacio~ nalismo que mal corresponde à verdade histórica. Os senhores de engenho e os donos de fazendas não eram, sem dúvida, uma classe de santos nas suas relações com os dependentes e servos ; êstes, por sua vez, não tinham qualquer semelhança com os anjos nos seus resmungos e atitudes diante do poder que os sujeitava . Desentendimentos e conflitos mancharam muitas vêzes o cenário em que se chocavam o chicote e o lombo, dando em resultado a revolta, a fuga e o abandono dos campos. Colhêr o relato impressionante de alguns episódios para dêll;!S extrair um realismo cruel e fixar assim a sociedade daquêle tempo é coisa que nos parece um atentado aos nossos costumes, uma subversão do ambiente que os inspirou. Para que pintar um retrato trágico de um período em que as atrocidades não representam a fisionomia geral dos engenhos e fa– zendas ? Há um limite que regula a faculdade de aplicar a violência . É aquêle a que se refere um atilado cronista, Vivaldo Coaraci, ao pre– venir-nos contra a tendência de "apresentar ao público de hoje os quadros excepcionais de sadismo que, naquêles tempos, inspiravam justificado horror, como sendo a vida cotidiana dos escravos nas fa– zendas paulistas". Estas consideracões visam retificar, dentro e fora do país, as pretensões de uma película que, abusando do poder de convicção das imagens plásticas do cinema, focaliza a última fase da abolição como se estivéssemos ainda no primeiro escalão do cativeiro. E apela para os argumentos dramáticos da propaganda, para a violência das ima– gens e certas cenas chocants e sádicas, como um documentário de . fatos normais. fazendo da exceção a regra. Quadro que se inspirou. por vêzes, em mot ivos de condenação e de cólera, em outras vêzes favoreceu narrativas e reminiscências -sem amargura. como a do soneto de Luís Guimarães "Os escravos". o de Raimundo Corrêa sôbre "Banzo". as estrofes em que José Bonifá– cio, o môço, desenterra a recordação das sombras ou às páginas em que Nabuco desfia o rosário das memórias, celebrando o ambiente de Massangana, em que passou a sua infância ... Com o poema de Vicente de Carvalho, "Fugindo ao cativeiro", encerra-se aquilo que poderíam9s chamar o ciclo poético da abolição. Foi êle o último poeta a gravar um episódio da comovente jornada. Episódio de que foi testemunha, quando môço. Ou ainda aquêle evocativo terceto com que Múcio Teixeira ce– lebrou a obra dos jangadeiros cearenses na libertação da Ter- ra da Luz: · "Na bravia amplidão dos verdes mares, O jangadeiro - livre - agora rema Sem ver a escravidão . .. vendo os palmai-es ! Tudo é livre na terra de Iracema : Canta a jandaia uns hinos sinirulares. Ao ver quebrada a.derradeira algema." Outros depoimentos relacionados com a época podem· ser invo– cados ; mas representam antes uma influência dela, a sugestão que exerceu sôbre a fantasia dos aut ores. Estão nêsse caso "Negrinha", de Monteiro Lobato. novela que é uma pequena oqra-Prima de ter– nura ; o soneto de Ciro Costa, "Escravo", cujo t ercet o final nos mos– tra 'ao apontar os cafeza is descendo em batalhões das serras, um vulto perdido "Sob o fúlgido céu a relembrar, magoado. Que os frutoa elo ca.lé são glóbulos vermelhos 1 Do sangue que correu do negro escravizado!' I'

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