Revista da Academia Paraense de Letras Agosto 1953

EMPRÉSTIMOS DE LIVROS Paulo Maranhão (Cadeira 28 - Leopoldo Sousa) Um dos maiores defeitos da nossa época, e muito especial– mente da nossa terra, é ler tudo por empréstimo. Nem mesmo o jornal - indispensável sobremesa do espírito, como lhe chamava Beyle - de aquisição tão barata, escapa a êsse costume prejudicial aos interêsses do próximo. O jornal é devolvido amarfanhado e quase ilegível, e o livro quando volta à estante de origem - fenômeno que raramente ocorre - não vem no mesmo estado em que foi cedido. André Chenier, constrangido a emprestar um volume da sua biblioteca, recebeu-o em tais condições de desassêio, t,ão maculado de tinta, Que escreveu ao lado de uma das manchas maiores, o seguinte: "Fui obri1:iado a emprestar êste livro a um indivíduo Que mo pediu com grande empenho. Tenho a certeza que não o leu. O único uso que fez dêle foi sujá-lo de tinta. Que Deus o perdoe e lhe afaste para sem– pre da cabeça a vontade de me pedir•l.ivros". Tenho na minha pequena biblioteca livros Que acusam a mal– dade dos amigos a ouem os emprestei, homens de esoírito, quase todos, observando no asseio da roupa e do corpo as melhores r egras de higiene e que não souberam zelar pela conservação daquilo que se lhes deu em confianca. A lombada de alguns dêsses livros voltou desfeita, pela violên– cia com Que foram conservados abertos. As margens das páginas es– tão anotadas com apóstrofes à imitação de Camilo - "Besta ! " - "Ca– valgadura'' ! - tresandando quase todas ao cheiro nauseabundo do tabaco. Alguns dêles se acham vincados pelas dobras que se lhes im- primiu,· para marcar o sítio da leitura interrompida. As fôlhas de guarda apresentam, algumas vezes, garatujas a tinta, feitas pelas cri– anças, que parece se terem utilizado de pincéis para o seu vandalis– mo inconsciente, como ainda hojP. praticam os chineses para escrever ; outras vezes, operacões de rol de roupa ; enfim. tôda uma devasta– ção, lamentàvelmente criminosa, contra a qual não posso buscar o re– médio no Código. Ninguém ignora oue também se encadernam liv ros em pele hu– mana. O Dr. Matthew, Wood, de Filadélfia, possui em exemplar da "His– tória de Gil Blas de Santilhana" encadernado na pele do seu primeiro possuidor ; o Dr. Askew, da Inglaterra, tem um tratado de anatomia, nas mesmas condições ; a biblioteca real de Dresden exibe em suas estantes um calendário mexicano. que se envolve na mesma fúnebre originalidade. Pois, muito bem ! Com gue prazer satânico eu manda– ria encadernar os livros aue · emprestei e me voltaram às mãos nela forma indicada, na pele dos Que cometeram o inclassificável selva– gismo. entre os quais distingo um dos nossos melhores líricos recen– temente coroado o príncipe dos tangeciorc:c; dP. liras reeionais.' Agora T't'lesmo eu teria que pPdir venia à família de Antônio Silva para enca– dernar o meu exemplar dos CONTOS de Perrault num pedtic;o da pele do poeta, a quem Deus perdoe as manchas de cigarro e de per– digotos e as d edadas com saliva com gue me encheu o livro. ..

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