Revista da Academia Paraense de Letras Agosto 1953

:R,EVIEl'l'A DA AOADEMlA PARAENSE tlE l.E'I'RAS 15 Claudica o Pecador, quem paga é o Justo Júlio Colares (Cadeira 29 - Múcio Jauvot) No local onde hoie se vê o mercado de São João do Bruno, no cruzamento da Senador Lemos com a Djalma Dutra, era lá que morava Anaré Simão Gonçalo (velho André), um cearense do sertão. vindo para Belém numa leva de "brabos" retirantes, rudemente açoitados pela sêca, nin_guém sabe o ano. O certo é que, por aauP.las redondezas ainda mal povoadas, todo mundo conhecia velho André. E alguns, .para bulir com êle lhe chamavam "Ceará-Ceroula", porque aqui chegara, como chegavam os fla_gelados naquele tempo, apenas de ceroulas e camisa de algodão, esta com as fraldas para fora. Gabava-se, o velhinho, de figurar entre os moradores mais an– tigos do bairro, incluído no rol dos veteranos, sempre habitando a mesma barraca de "sopapo", que era sua e obra do seu engenho, quase tão velha quanto êle, e já de testamento feito para a primeira in– vernada . .. Verônica. mulher do velho nordestino - a sua sempre lembrada "Veronca" - dizia-se que tinha sido uma serrana bonita, e lhe dera do seu amor. sob as palhas daquele teto, uma prole numerosa ; e só Deus e êle sabiam quanto lhe custava, agora, na extrema velhice, com o pé a resvalar na cova, viver sem o alento da companheira e dos filhos, todos debaixo da terra, restando-lhe, apenas, uma infeliz neti- . nha, ce_ga de nascença, a tatear dentro daquele abandono. .Mas, fibra de cearense não esmorece. E velho André, mesmo só e carregando na mochila os seus oitenta janeiras, não esmorecia nunca. Sertanejo, gostava de plantar e criar. Quintal enorme, terra bôa, havia de tudo alf. As fôrças é que já não ajudavam quase, corroídas pela idad~. Mesmo assim, sempre irrequieto e ma!fru~ador. ainda ~azia cuscus oara vender. Cedo, lá estava o tabuleiro a porta, a cegumha "v~gi_ando" .. .. :füle _ganhava a rua, p_or ali perto, oferecendo maca– xe1ra e mandioca, conduzidas em um carrinho de mão. . Enquanto a_ndava por fora, a freguesia encostava, ao tabuleiro - e haJa en!1'!1nar a pobrezinha : oagavam um cuscus e furtavam outro. . . Nao tardava muito. lá vinha êle. todo treme-tremendo, na– quela ânsia, já impossível. de caminhar depressa ; e, ainda de lon_ge, insofrido. antes de atravessar a vala que o separava de casa, ia logo indagando: - Davina. vendeu tudo. mia fia ? - Nhor sim, pai véio ! Tudin ... Velho André fazia então, a conta d e cabeça: "30 cuscús de 40 réis; trêis cruzado". E conferia o cobre .. . -Tá certo não, Davina ! Os cabra te imbruiáro outra vêis .. . Mas tem nada não : C'hore n íí.o mia santa : amen -hã eu insino êssis mi– misarávi a sê fio di Deus. Nem nue oague o justo r>elo pecadô ! E velho André. h omem rude, direito, curtido dP. provações ; mu– mificado quase, e quase santificado pelas suas próprias renúncias, quís perdoar e não pôde ... Também Cristo (dizem as Escrituras) não pudera, mesmo divinamente compassivo e bom, perdoar aos vendi-

RkJQdWJsaXNoZXIy MjU4NjU0