Revista da Academia Paraense de Letras 1968

SlLVIO MEIRA SAÚDA JOSU~ MONTELLO 89 cha, enquanto alguns fregueses mal intencionados furtavam os pares de sapatos. Num só dia desapareceram das prateleiras, inexplicàvelmente, dezesseis pares, abalando nos alicerces a frágil estrutura do pequeno estabelecimento, enquanto o minúsculo gerente mergulhava em pro– fundidade na leitura dos livros de seu agrado, que já revelavam o seu bom gõsto. Ao invés de estórias de quadrinhos - como o fazem os meninos de hoje - devorava os Contos de Perrault e as páginas movimentadas e coloridas de Cervantes. Sua imaginação se alimen– tava de sonhos, cuja fonte interminável brotava das páginas dos li– vros. 11:sse menino provinciano, pobre, trazendo na alma a luta inti– ma da dúvida religiosa e o coração a sangrar como o de Renan quan– do se viu na contingência de abandonar as convicções piedosas e com a sua atitude castigar a mãe velhinha na Bretanha, que não entendia as razões do filho, teve em sua vida êsse ponto comum com o deli– cado autor de "Souvenirs d'enfance et de Jeunesse". Entre o que lhe dizia a razão e a obediência cega, preferiu o primeiro caminho. E pas– sou dai por diante a lutar por si mesmo, buscando no comércio da inteligência - que orna as cabeças laureadas - o que não encontrou no comércio dos sapatos, que ornam os pés. Antes dos quarenta anos tinha ingresso na Academia Brasilei– ra de Letras, subindo às vêzes de dois em dois, de três em três e tal– vez de dez em dez degraus da vida até atingir os dêsse Paraíso das Letras, fazendo de um salto o que outros só conseguem depois de longos anos, a arrastar-se pelas escadarias, os joelhos a sangrar, como fieis a cumprirem penitências. Josué não andou pelos caminhos da vida, vôou e sobrevoou as estradas, carregando consigo as suas as– pirações, as suas ambições, as suas lágrimas e os seus sorrisos, po– dendo exclamar, como Stefan George, dirigindo-se à trajetória de sua vida: Meine Strasse Du ziehst sie nicht. Tranen fa/l!'n Du siehst sie nicht. Minha estrada, Não as entenc-r , Lágrimas caem, N em sequer as vês. Subidas como essa à maneira dos balões estratosféricos ou dos foguetes interplanetários: não são comuns. Fazem-nos pensar madu-

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