Revista da Academia Paraense de Letras 1968

• • I! ANDANÇAS PELA ESPANHA '19 tremulenta cadência de braços e mãos, como asas de pássaro ferido, mal flabelando na agonia do último arranco, a que a música de Saint-Saens repassada de doloroso e profundo sentimento de queda, de frustração, de desespêro, animava de plástico realismo sensorial. Quando deixei o teatro, findo o espetáculo, a uma hora da ma– drugada, dos bares e "bodegons" da praça e de suas radias, vinha um rumor de gente que se divertia. De todos, o Las Cuevas de D. Luiz Candeias, na escaleira dos "cuchilleros", ao pé de um dos arcos da praça, é o mais afamado, pela tradição e legenda bravia de que se cerca e a cujo interior se chega por uma porta em arcada baixa e escadarias estreitas, de pedra, que levam ao sub-solo, onde há peque– nas câmaras ou celas, com paredes ornadas de armas antigas, lem– brando cavernas de bandidos. Nesse ambiente de singular reconsti tuição histórica da cidade, é que se amesendam os visitantes, servi– dos por garçons trajados a capricho, em travestis de bandidos. O nome lhe vem de um salteador de estradas de tempos remo• tos, uma espécie de Robin Hood madrileno, que assaltava os ricos, para distribuir com os pobres o fruto das pilhagens e que tinha ali, na cueva, um refúgio, onde se punha a salvo dos beleguins do pr~– boste. Ainda hoje, naquele "bas-fond", diante dos trabucos, punhais, garras, largas faixas vermelhas, "cuchillos", louças de barro, que se dizem do tempo de D. Luiz Candellas, há um olor de cousas velhas, bafientas, a lembrar a Madrid desordenada e pitoresca, chula e re– belde, dos picaras "valientes y majas" dos bons tempos dos séculos XVII e XVIII. O vinho tinha a mesma gostosura dos velhos vinhedos secula– res da Andalucia e de Aranjuês, e podia se beber nas "botas" tradi• cionais, o bacalhau, o terneiro, as ceboladas, a "paella" biscaina, se– vilhana, quase sempre, com muita salsa, pimenta, molhos planatu– rosos com sabor fortemente picante. Só que não havia mais "bor– rachos", como aquêles que Velasquês perpetuou numa de suas telas, nem "majas" goyescas, nem maravedis, nem reales para as propinas, mas apenas boêmios pacatos, burgueses endinheirados e turistas in· ternacionais que ali encontravam o algo de nuevo, nas suas andan– ças por terras de Espanha. De volta, ao me acercar do HotelJ ainda na rua, bati palmas e logo, surgindo pela esquina, um homem se aproximou, encapotado. chapelão de abas largas, de bengalão e na ilharga do cinto, um gran– de chaveiro pendente. Era o sereno, o respeitado e popular guarda-noturno, traclicio– nal em certos bairros antigos da cidade, que acudia por aquêle meu modo estranho de chamado, fora de hora, me abria a porta, me acom– panhava até o elevador, e de mim se despedia com um cantante "buenas noches, caballero y muchas gracias", levando a sua "propina".

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