Revista da Academia Paraense de Letras 1968

102 SULTANA LEVY ROSENBLATT confins da minha iniància modinhas de ninar com palavras sugesti– vas; ou me surpreendia repetindo frases alencarinas ou versos bila– queanos, fragmentos poéticos de nacionalismo aprendido na escola primária; as saudades eram mais extravagantes; tinha saudade de Pedro II, tinha saudade de um sabiá cantando no alto da palmeira, saudades de que!Il nunca vi; pessoas e fatos, cenários e lendas, di– tados do povo, poetas, prosadores, artistas, pintores, o hino, a ban– deira... tudo o que aprendi a venerar, já não seria meu. Enquanto pensava, tudo pareceu fugir; o verde-amarelo dizia-me adeus e rostos amigos me olhavam esquecidos de mim. Em resumo, chegou por fim aquêle dia, o meu último dia de brasileira. Nunca me foi possível recompor perfeitamente o que aconte– ceu; lembro-me que, obedecendo a uma ordem, e imitando o grupo de que fazia parte, quase automàticamente levantei o braço direito fazendo um juramento. Depois, à chamada çlo meu nome, fui in– troduzida em um pequeno gabinete. AI, no momento de "dar o sim", respondi simplesmente, ao funcionário que me interrogava, não me achar ainda preparada sentimentalmente para renunciar minha ci– dadania... Ao deixar êsse gabinete, a reação dos que me esperam de bra– ços abertos para cumprimentar-me, foi quase hostil, mas dentro de mim, meu coração vibrava ao som do hino brasileira - Oh! pátria amada, idolatrada, salve, salve ! O que tem a ver tudo isso com o livro "Barracão", explicarei; saindo desta prova de fogo, meu espírito voou para o Pará com a ansiedade, a confiança e a gratidão de quem escapa de um perigo de vida e se refugia jubiloso nos braços maternos . E fui recebida com as festas que acolheram o filho pródigo . Todos riam para mim, todos me faziam recordar ristórias; e eu os reconhecia, também ria de contentamento. Todos quem? Fantasmas . Na maioria fantasmas. Gente que conheci e gente de quem só ouvi falar. Era a voz de meu pai, com timbres de maresia, sempre contando casos do Cristão . . . era a tia Inácia, entrando, de saia de chita rodada, dançando e rindo a toa; e passava a rosqueira, de cesto à cabeça, à hora do café da tarde; e lá vinham as meninas da Escola Normal.. . Eu via Belém com olho grande, do pintor Chagall, contemplando a sua vila; tudo englobado; torres de igrejas, frondes de árvores, ruas e praças, ve– las de barcos, bandeira vermelha de açai amassado, e gente do povo, e casos de lendas. . . Urgia escrever. Mas um livro não é teatro de arena que prescinde de cenário; e cenário regional, quando se fala particularmente da r.egiãb amazô– nica, inclui fenômenos da natureza, flora, fauna, mitos e crendices .

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