Revista da Academia Paraense de Letras 1954

10 REVISTA DA ACADEMIA PARAE~SE DE LETRAS lares, onde quer que a sua voz se ouvisse mais alto, tonitruante, dev as– tadora, como o regougo do mar em fúria, ou lutulenta, lugubre, como o lamento secular da raça de onde vinham os seus ancestrais. Então sim, nessas horas e somente nessas horas, Patrocínio era a própria Glória, porque se transfigurava peJa magia do gênio e se con– fundia com a voz da terra, do povo, da raça dessa voz que só se ouve nas grandes crises da nâcionalidades, nas supremas convulsões sociais, nos cataclismos históricos das Civilizações. Per aspera ad astra, ehtre quedas e ascenções, fracassos e der– rotas, mas lutando sempre, impetuoso, agressivo, contundente, como possuído daquele incorcivel amok dos orientais, mas sempre em busca daquele sublimi ~dera vertice, de que falava Horacio, eis a linha si– nuosa do seu Destino, diria melhor talvez, a cavalgata de sua Cruzada, pois êle passou entre os de sua ger.ação, como aquele cavaleiro negro das canções de gesta, que vence pelo desgarre e pela fúria dó arremêsso, e na arena onde preliou, mal deixa, como sinal de sua passagem, a vaga lembrança de uma flámula, que era um símbolo de fé e libertação.. . Se lhe acompanhardes as andanças, vereis que sempre foi assim, destemeroso e audaz, impulsivo e desenvolto. mas sentimental e incauto, boêmio e imprevidente, estranho misto de paladino e de jogral, em cuja alma a noção heróica da Vida, conturbasse e impedisse o sentido imedi– ato e prosaico da Realidade ou as faculdades pragmáticas da Razão. Só que queria lutar, espandir-se, extroverter-se, lutar sempre. Por uma idéa, por um nome, por um princípio, por uma causa, por um grão•de areia, por um nada, se nêsse nada houvesse a glória de uma redenção. E contra tudo, contra todos, pouco importa, contra sí mesmo, contra a miséria do seu berço, escravo e espúrio, o negror de sua pele, os recalques que por vezes esplodiam, incontrolaveis e desaçaimados, como vezes subterrâneas de ancestrais, invocando Ogun e Xangô, nos ritmos bárbaros dos candoblés africanos, contra os duendes apavorantes de sua meninice solitária, sem carinho e sem amôr, contra sí mesmo, mas para se redimir, para se sul;>limar, para fugir à condição de pá ria, proscrito que viera ao mundo, como: Estes que um Deus cruel arremessou à Vida, Marcando-o com o sinal de sua maldição. Libert{lra-se antes, para libertar a sua gente, os seus irmãos, a sua Raça. O negrinho, filho de escrava e quitandeira, não daria para mole– que de sinhá-moça, vendedor de dôces e de angú, nas ruas de Cam– pos sua cidade natal. Nem se contentaria, já no Rio, no mísero set'– viço de aprendiz de farmacia, com dois mil reis de ordenado mensal, nem ainda com outro emprego, na casa de saúde do Dr. Batista dos Santos. Já aprendeu a lêr, conviveu com estudantes boêmios, numa re– pública e sonha ser médico. Ainda não tem forças para tanto. Mas se não chega ao doutorado, não lhe basta t ambém o diploma de fa.rma– ceutico. E faz-se professor. Sente então e talvez pela primeira vez, en– sinando e predicando escassas e curtas letras, que ensina1:, predicar, dou– trinar, evangelisar, mas aquelas verdades eternas da liberdade, da igual– dade e da traternidade humana, às turbas, às mult idões, ao povo, era a sua vocação, a vocação messianica de sua Vida. Mas antes foi poeta e amou. Como Schubert, o gênio infeliz, enamorou-se da própria discípula. E a Vida, dessa vez, ainda, o traiu, ex ilando-o da presença da bem- amada, que só mais tarde, lhe foi com~anheira de glória e de infortúnio.

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