Revista da Academia Paraense de Letras 1953 (MARÇO V4 EX 5)
éá REVISTA DA ACADEMIA PARAENSE DE LETRAS Ela olhou-o e, na inconsciencia da embriaguês, gritou-lhe uma pavorosa obscenidade, que foi cair em cheio na sua honra de filho, como tremenda bo– fetada. ~!e, vexado, quasi a chorar em voz alta, deixou-a. A velha, enchendo-o de impropérios, furiosa e assanhada, saiu da espe– lunca I!. aos cambaleios, zaguezagueando, fazendo rir os garôtos, recolheu-se a casa. Lá chegando, deixou-se cair no soalho da sala enquanto sinos tocavam a sua doce rapsódia, enchendo o céu azul de vibrações de cristal. Quando êle voltou a casa, achou-a dormindo. A irmã também adormecera profundamente-, porque o alimento que a tinha fartado, encontrando-a fraca, produziu-lhe forte reação no organismo. O rapaz sentou-se num velho caixão de pinho e pôz-se a chorar de m a nso os cotovelos fincados nos joelhos e o velho chapéu, afunilado e rôto, a tapar-Ih~ o rosto. AI, que remorso intenso n 'alma I Éle, só êle, fôra o culpado daquela des– graça tôda 1 Apesar de tudo, no meio do seu descalabro moral, ficára-lhe o aíéto sa– grado pela familia. Era como se numa esterqueira desabrochasse um lirio azul. ~ . · E ali estavam as duas desditosas, vencidas pela miséria, sujas e magras, vitimas da Fome... A ce na do botequim caiu-lhe à mente e êle sentiu um longo e Yasto hor– ror ao rever as atitudes equivocas e as palcvras imundas da velha , que cambaleava pelas ruas, os seios murchos espostos aos olhares cupidos da canallta. Depois evocou a figura espiritual e doente da irmã, pálida e magra, a vo~ desfalecida, tremula de fome ... Pobrezinha ! Surgiram a imaginação os seus olhos negros e grandes, onde havia um doloroso romance de saudades e de infinitas nostalgias. .. E também se lembrou de sua noiva, que lhe apareceu lá de longe, lá de muito longe, numa esgarça névoa azul cscentc, como se os seis meses que os esperavam fossem seis anos. De súbito, horrorizado, s aiu para a rua a vêr se se distraia. Na doçura infinita daquela primeira tarde do ano novo os s inos cantavam a sua romanza alegre ... Um largo sopro de alegria e de felicidade fazia vibrar tôda a cidade. Grupos despreocupados ;:,assavam cantando aos zangarreios de cavaquinhos e bandolins, ou premindo sanionas monotonas; homens avinhados, tropegos e ri– sonhos, cuspiam abjeções, bebendo sempre ou então vomitando grandes go!fões de vinho mis turado com bacalháu e castanha, que manchavam e emplastavam as sargetas; e conservavam-se por muito tempo escarrando aos pigarros, arrotan– do aos soluços, apoiados as paredes, com os olhos vesgos, as bocas torcidas, e cha– péus de lado ... Em alguns bot.equins, com folhagem p elo ch ão e nos portais, gramofones fanhosos, como ciganos behedos, cantavam canções garotas ... o s bondes passavam repletos, e nas plataformas, quando chegavam ao pon– to, grupos alegres davam gritos prolongados : -Viva o ano novôôôô. . . Vivoôôôô ... Nos muros os garotos tinham escrito grandes saudações ao ano que 00 _ meçava, numa ortografia bá rb-ara e torta, num conjunto desengonçado e grotesco, como farandula de bebedos ... E juntayam grandes esquissos de figuras obscenas cedendo a êsse prurido canalha que todo vagabundo sente diante de um mur~ calado. . Artur lá ià p elas ruas, s ujo e r ôto, chapé u velho, arrastando pela cidade a sua decadencia, tendo na garganta doridos soluços que lhe acicateavam a alma como espinhos, . . As vezes, d&va-lbe vontade de parar a uma esquina e chorar muito, muito mesmo - último recurso dos infinitamente desgraçados. Anoitecia. o céu, numa alagação de prata liquifeita, inundava a Terra de grandes c)aridades argentinas... O movimento das ruas aumentava e os lampeões acesos formavam um iongo rosário Uúmlnando a cidade, •
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