Revista da Academia Paraense de Letras 1953 (MARÇO V4 EX 5)

• REVISTA DA ACADEMtA PARAENSE Í>E LETRAS NA LAMA (Conto de An o Bom ) d~ TERENCIO PORTO Qunndo a irmã , por fim, lhe msse, chorando, que até aquela hora da tar – de nada havia comido, êle r omp eu num pranto desatinado e impetuoso, com o rosto entre as mã os pálidas e ~ujas. E causava dó vêlo, assim, muito m i,gro e todo esfarrapado, a estremecer convuls ivamente, cm soluços largos e gemedores ... A irmãzinha npiedou-se e, enxugando o pranto, dando firmeza à voz tre • mula e desfalecida de fome, p ôz-lhe a mão branca no ombro e d isse docemente : - Não chores, Artur... Vai vêr a mamãe. Vê se ela está no botequim da esquina . .. Ah I O pr.anto recrudesceu-lhe :'l lembra nça da velha mãe, que desde a sua cntr:icla na c.~deia, vivi:1 nos :1lcoiccs e nas tabernas, :1 prostituir-se e a em– t.ria;!:ir-s e, passando ns n oites entre marinheiros e sold:1dos hebedos, tôda entregue n umn volupia danada e mórbida - jogue te c.'.!go e inconsciente de um atavismo funesto e cruel. Ah ! E êle fôra o único culp:ido de todo êsse descalabro, porque não traba– lhava, vivendo n a ociosidade, rolando numa boemia incorrigível, sempre à mesa a squerosa das baiúcas, na companhia deleteria de vagabundos e de m ulheres ignobeb .. . E, assim, êlc se foi celebrizando tristemente, n a policia, e nos noticiários dos jo!'n.ais, ccino desordeiro conhecidc e perigoso. Cr iára-se nas sargetas, depois passara :'ls tabe rnas e das taberna~ aos pros– t íbulo$, envenenando-se n o vicio, a trofiando todos os sentimentos afetivos e tor- mando-se aspero e m ã u. . Aos dezoilo anos amá ra intensamente uma rapariga morena e bôazinha, moradora do cortiço vizinho. E êles se terinm casado se não se desse o conflito que originára a $Ua prisão. Ela desa parecer.a, talvez envergonhada, talvez enraive, cida, e êle ficá ra com aquele amor no peito, cantando nenias i nfinilamente ma– guadns ... E desde então a sua vida fórn uma série crescente de misérias e vergonhas. Seu pai morrera no hospital, a podrecido pelo alcool e pela sifilis... Sua mãe, n e– vrotica e histérica , esfor çava-se µor manter-se com decencia, não por si, mas pela filhinha, que ela amava religiosamente como só mãe sabe amar. i>'Ias o filho, q ue a uferia algum dinheiro na venda avulsa de jornais e bi– lhetes de loteria, p cr der:i-se p or comple to e and!lva perseeuido p ela polícia. E como ao luar diafano de uma noite de junho anavalhasse o rosto de um companheiro que lhe requestava a amante , fôra preso e condenado a seis meses de cadeia. E falta ra-lhe o pão .. . A fom e tem exigências atrozes. A pobre mãe resistiu h eroicamente dias e noites chorou com a filhinha. . E foram momentos agudos e terríveis, cheios de agonias e desfalecimentos. Foi então que a fanitlia Megéra, que tem os dentes caninos, a empurrou par a a lama . . ·. E ela deixou-se ficar na ,;ala, contanto que a filha ficasse salva não morresse a mingua. A moça, pobre e desditosa flôr do monturo, chorava de horror e ver gonha. E morreria de pejo se não chegasse o irmão, que f ôr.a solto naquela tarde alegr e de Ano Bom, tão cheia de sonoridade, tão suavemente doce e cncalJnada • , • :tle foi a venda <'omprar alguma coisa para matar a fome à irmã, com 0 ú ltimo niquei que possuis, e em seguida saiu em busca da velha mãe. Encontrou-a numa ta berna, completamente embriagada, descomposta, · os s eios, murchos e s ujos, aparecendo pelos rasgões da camisa imu nda. Entrou com os olhos m arejados de lágrimas, tomou-lhe o braço e puxou-a para a casa, sem nada dizer, retranzido de ver gonha.

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