Revista da Academia Paraense de Letras 1953 (MARÇO V4 EX 5)

54 RE'fISTA DA AÓADEMÍA PARAENSE ÓE LETRA$ quando tôdo êsse horror se corporificava, tremendamente voraz, uma avalan– che de desentendimento perturba a vida do casal e o rei macrocéfalo, l á pelos recantos °do convento de Mafra, numa estreita amizade com Lobato, conta por conta iniciou a desfiar o seu rosário de amarguras e, ambos, em confidências e entendimentos, acertavam providências para a solução dos problemas que se co– briam com o lodo das deprimências ou se alagavam na lama das deturpações. Lisbôa nada mais era senão o palco de um catacllsma apavorante, onde se desenrolavam cenas desordenadas. Destruindo dinastias e subju gando exércitos, Napoleão riscava novos ru– mos à polltlca dos povos e colocava o rei de Portugal no centro de uma arena, onde leões disputavam a supremacia do terreno. De uma das margens do Mancha, os olhos de Bonaparte enchiam-se de chamas e revolta, mirando os nevoeiros de Londres, que se não deixava abo– canhar pelo desvário do marechal vitorioso. Londres zombava da artilharia do dominador, assim como um dia, pouco mais de cem anos transcorridos, viria sorrir dos canhões n azistas, não se gcnuflexando às bombas dos aviões de Hitler. No mosteiro em que residia, D. João escutava o soar das horas noturnas A Insônia cavalgava nos seus olhos abertos e as noites passavam, uma após outra, como cansados dromedários. As suas pupilas vermelhas pelas vigllias continuadas, lord Strangford· assemelhava ter o aspecto de um demônio que o apavorava com a aliança fir– mada com o monarca da Grã-Bretanha, o que o diplomata bretão evocava noi– tes a fio . Mas o estratégico Junot, conduzindo os batalhões de França, aos seus olhos tinha tambem as aparências de um fantasma. Os soldados, as lanças e canhões sob s uas ordens, e que há muito estavam dentro do território da Lusitânia, foram deitando neve sobre o cabelo do regente. Portugal era aquela faixa de terra que h á séculos se abrigava .sob a égide de uma bandeira gloriosa. E porque a sua lealdade não rebentara os élos da amizade com a Inglaterra, a prepotência de Fernando VIl e a eplepsia de Bonaparte conjeturaram fragmentar as terras do reino lusitano, cuja casa de Bragança sepultar-se-la para sempre na voragem das ambições de ambos. Os punhos p ortugueses eram frágeis para conter a onda hércules dos regimentos adversários. Já se ouvia o rugir espectral dA catástrofe que se avi– zinhava. Todavia, em meio ao pânico do momento, com o sabor de uma ben– ção dos céus, ecoou a advertência dos estadistas e diplomatas, que era deixar aberto o caminho para o inimigo alcançar Lisbõa. Ai estava a amplidão do mar e o r ei que o sulcasse nas suas n áus levan– do o ouro e a nobreza do pais, rumo da colônia que se escondia nas selvas das bandas ocidentais. E a fuga real, pelo oceano a dentro, ficou assinalada na história com o condimento exagerado dos motejos. Mas o tempo, velho historiador, escreve capltulos inenarraveis. Decor– rido um século, se D. João ainda existisse, como sentiria os seus ombros ali– viados da tris teza e vergonha de abandonar o seu reino . As fraquezas, ontem cobertas de apodos, agora, no teatro das guerras contempor ân eas, !oram vis tas pelo prisma dos herolsmos. Uma simples questão da evolução da 6poca. Os canhões obsoletos do passado e as fortalezas voadoras de hoje, são símbolo.; de dois extremos at}tagõnicos. se o monarca ainda reinasse no primeiro quartel di,ste século, assistiria às fugas do Negus de Adls-Abeba e do rei de Albânia, quando rugiram nas su as fronteiras os tropéis da cavalaria fascista e nos seus céus revoaram os bombardeio de Mussolini. Com os seus olhos esbugalhados, espiaria a soberana d Holanda e o rei norueguês buscarem a tutela dos paises aliados, em terras d~ tantes dos seus súditos, abandon ados à mercê da sorte, da complac<!ncia 0 ; fúria destruidora das divisões de Hitler.

RkJQdWJsaXNoZXIy MjU4NjU0