Revista da Academia Paraense de Letras 1953 (MARÇO V4 EX 5)

52 REVISTA DA ACADEMIA PARAENSE DE LETRAS TORTURA DE UM CÃO VELHO De THOMAZ NUNE S Principiava a cidade a entrar nas suas horas de quie tude. Apenas a terrass e do "Grande Hotel" oferecia o espetaculo noturno das rodas ar istocráticas : gente que bebe, fuma, atualiza têmas, a borda assuntos regionais e . . . fala m al d a vida alheia. De lã, resignado e trêmulo, velo até o a ntigo L a r go de Nmmrr. um cão ve– lho. cujo sôno de vagabundo as estrelas a bençoam com a sua piedad e luminosa . Sem dono, é da rua, e a rua lhe oferece diariame nte a esm óla d e um õsso. A praça tradicionalmente cristã estava desl!rta. O d esgraçado procurou en– tão um ~ecanto para descansar. Mas ainda era cêdo. A ronda pod eria e nx otá -lo ou perturbar-lhe o sossêgo com o tropél das montadas. Convinha , pois, Ir m a is longe em busca de ambiente sombrio, de luz escassa , pouco acessíve l a o idillo de namo– rados. Iria pa ra a Estrada de São Braz, cheia de sombras la r gas, com os seus va&– tos passeios varrido pelo trabalho desta classe de torturados : os s e rvidores da Lim– pe!a Pública. E foi, lentamente, sacudindo a cauda ulcerada. Lã, quase à esquina, encontrou um cãozinho branco, f elpudo , b em tra tado, mimo de mãos femininas, que se agasalha va no calçam ento. -Você, aqui, soslnho, a estas horas ? De onde velo ? -Sou deste bairro mesmo, responde o felpudinho. O marido dc--mlnha dom• s âl às dezoito e volta às seis. Ela o Imita, na turalmente , Indo cm companhia de um cavalheiro, com a direrença de sair um pouco m ais tarde e regressar um pouco mais cêdo. Esqueceu-s e hoje de mim e eu fiquei de fóra. -Mas você, pelos modos, é um felizardo : coleira de prata, !ovado e pen– teado. Tão diverso do m eu é o seu destino. -Não contesto. Resta-lhe, porém, liberdade para conhecer tôdas as cadelas dêste e de outros pontos. Qualquer âgua lhe Java o corpo, enqua nto eu, perpetua– mente preso, ouço o tumultuar dn cidade n aquela gaióln de luxo. Mal saio à porta, a creadlnha me vem buscar, a pertando-me e ntre ca r ici as de encontro ao peito. Nas noites de recato, durmo no mesmo Jeito com a minha senhora, s entindo– lhe a pôlpa mor.?na, a voluptuosidade cantante dos su spiros. Isso, para mim, é tortura. -Contudo, és m ais feliz, pelo menos durante a mocidade dêsse corpo que dois homens requestam. Não sabes quanto de m al para os cães a nda p elo mundo exterior. Somos uns condenados. Para cúmulo do infortunlo, uma horda feróz de laçadores caça– nos para o exterminio n os fornos da Cremação. A Sociedad e Protetora dos Ani– mais n ão tem ramificação aqui, e os supe r-h om en s, al.>roquelados a uma surrada moral, condenam o nosso instinto, mas imitam às escondidas.. . Ouvi dizer que noutras terras civilizadas as exposições can in as marcam sucesso. Pois bem, n estn Ca pit;iJ, que é viveiro de tantos cães s ociais, nem nú e nem vestido. Avalie, portanto, a minha sórte : niio tenho casa, conto o t empo pelas caminhadas que dou, de sol a sol, olha ndo a or gia dos predestinados sõbre almofa– das de automóveis, ao lado de damas bonita~ e cheirosas. - E não dorme nunca ? - Durmo. O m eu leito é de areia ou de pedra, em zona d espoliciada, no es- cavado das artérias públicas, sob a cópa sonole nta das m a n gueiras. De súbito, uma voz feminina : "Dóg !" A serviçal de quadris roliços aparece, enlaça o felpudlnho e lã se vai, cabeça unida ao corpo do cão. O infortunado companheiro de palestra baixa as orêlhas nessa r esignaçã o que n em sempre a desgraça consente, e duas lágrimas lhe escap am dos olhos s0bre 0 lagêdo. Fixa-as, sonda-lhes a psicologia de contas p erdidas e d eita-se para es– perar a aurora. J,flgrima de cijo vag.:1buncto tnm b~m é vaga bunda . ..

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