Revista da Academia Paraense de Letras 1953 (MARÇO V4 EX 5)

• 16 REVISTA DA ACADEMIA PARAENSE DE LETRAS lhe ser difícil acomodar os dois viajantes na sua modesta cazinha . Assim, não duvidou aplaudir a lembrança, dizendo ao · marido : - Deixa lã, homem, cada um sabe de si e Deus de todos. O caboclo abriu a porta e saiu acompanhado pelo cão de guarda, cuja cabeça amimava, convidando-o para lhe fazer companhia, por via das dúvidas. A noite continuava escura como breu. Lufadas de um vento quente, prenúncio de tempestade, açoutavam nuvens negras que corriam para o sul como fantas– mas em disparada. As árvores da beirada soluçavam, vergadas pelo vento, e grossas gotas de ál(ua começavam a cair sôbre o chão ressequido, de onde subia um cheiro ativo de barro molhado. - Agasalhe-se bem patrlci~. gritou o português ao caboclo que safa. E, fechando a porta com a tranca de pâu, veio ter com a familia. Logo depois, desejavam boa noite uns aos outros; o hóspede, que deu o nome de Manuel, afundou-se numa rêde, que lhe armaram na sala, e ainda não havia meia hora que! saira o seu João, já a sõra Maria, o marido e os filhos dormiram o sono reparador das fadigas do dia, acalentado pela calma de uma consciência honesta. A Anica depois de rezar à Virgem das Dores, sua padroeira, não pudera fechar os olhos. Impressionara-a muito o desaparecimento da pequena e da malhada, que acreditava filho dum roubo, e sem querer associava na sua mente a êsse fato as histórias terrivels ti_ue lhe lembrara a mãe pouco antes, sõbi:e os crimes diàriamente praticados pela quadrilha de Jacob Patacho. Eram donzelas raptadas para saciar as paixões dos tapúlos ; pais de famflla assassinados bàrbaramente ; crianças atiradas ao rio com uma pedra no pescoço; herdades incendiadas, um quadro lntermlnãvel de atrocidades ináuditas que lhe dansavam diante dos olhos e parecia reproduzido nas sombras fugitivas pro– J~tadas nas paredes de barro escuro do seu quartinho, pela luz vacilante da candeia de azeite de mamona. E por uma singularidade que a rapariga não sabia explicar, em todos aquêles dramas de sangue e fogo havia uma figura saliente, o chefe, o matador, o incendiário, dem0nio vivo que tripudiava sôbre os cadãveres quentes das vitimas, no meio das chamas dos incêndios, e, produto dum cérebro enfêrmo, agitado pela vigilla, as feições dêsse monstro era a do pacifico tapúio que ela ouvia roncar plàcidamente no fundo da rêde na sala vizinha. Mas por maiores esforços que ~ moça fizesse para apagar da sua imagi– nação a figura baixa e bexigosa do hóspede, rindo nervosamente da sua loucura, mal fechava os olhos, lá lhe apareciam as cenas de d,esolação e de morte, no melo das quais progrediam os olhos ardentes, o nariz chato e a boca desdentada do tapúlo, cuja figura, entretanto, desenrolava-se inteira na sua mente espavo– rida, absorvendo-lhe a atenção e resumindo a tragédia feroz que O cérebro imaginava. Pouco a pouco, procurando provar a si mesma que o hóspede nada tinha de comum com o personagem que s onhara, e que a sua aparência era toda paci– fica, dum pobre tapúio honrado e inofensivo, examinando-lhe mentalmente, uma a uma, as feições,f,oi-lh: chegando a convicção que n ão aquela noite a primeira vez que O vira, convicçao que se arraigava no esplrito, à medida que se lhe es– clarecia O memória. Sim, . era aquele mesm~ ; não era a primeira vez que via aquêle nariz roido de bexigas, aquela boca imunda e servil, a côr azlnhavrada, a estatura ba ixa e vigorosa, sobre~do aquele olha r_ indigno, desaforado, tôrpe que a incomodara tanto na sala, que1mand_o-lhe ~s seios. Já uma vez fora insul- d aquêle olhar. Onde ? Co~o ? Nao podia lembrar-se, mas com certeza ta_ a por rimcira vez que o sentia. Invocava as suas reminiscências. No Fun- nao era a P •t· ta bém n-o f"ra · p chal n ã o podia ser ; no s1 10 m a o ; seria no arâ, quando chegara com a m ãe, ai:1da menina ~ acom?daram-se em uma casinha à rua das Mercês ? Não; era mais recente muito mais re_cente. Bem.; parecia recordar-se agora. Fôra em Santarém, havia cousá de dois anos ou três, quando ~li estivera com o i I tir a uma festa popular, o sairé. Hospedara-se entao na casa do ne- pa para ass s ' ...

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