Revista da Academia Paraense de Letras 1952 (Janeiro v2 ex2)

'REVISTA DA ACADEMIA PARAENSE DE LETRAS 163 nos abatia o espírito e nos mergulhava no mundo do abstrato, com• pclia-nos a alma para o desconhecido, sôbre que tantas vezes nos curvamos atraídos pelo mistério. Uma m esma voz, vinda talvez da sombra da noite, nos chegava confusamente aos ouvidos como um poema triste que nos arrastasse à meditação profunda, nos seus úl– timos momentos de existência. Despertado pela sua voz, sent i erguer-me da a ngústia cm que me encerrara. As recordações amorteceram-se vagas e distantes, e tôda a minha alma se voltou a contempla r o vulto de Edmundo, prestes a adormecer pa ra sempre. O seu aspecto macilento parecia espiritualizar-se. Vapores de lividez cobriam-lhe o rosto e vagavam por sôbre o seu corpo, dan– do-lhe o ar mortuário, Mas os olhos continuavam a ter um brilho profundo, e a voz magoada tinha um rítimo de clara sonoridade. - Estás surpreendido, Túlio, e cu vou dizer-te o que se passa em meu espírito nestes extremos instantes. Eu espe rei a sua voz. Como em tantas outras vezes, em que êle me parecia estranho ou misterioso, la ouvir-lhe a palavra ; como em tantas outras vezes, pa ra esclarecer-me, la êle invocar os seus conhecimentos da natureza. Sõmente, agora, seria penoso ouvi-lo, às portas da eternidade. - Ansiava pela tua presença, continuou Edmundo. Queria fa– zer-te a últ ima revelação. Todos os que nos cercam não estão m enos surpreendidos que tu. Estás certo que o meu espírito fôra abalado pela dor, que eu fôra subjugado pelo medo religioso, quan– do clamei pela figura sangrenta de um Cristo. No entanto, cu não vacilei nas torturas que me têm lacerado, não sou um convertido, o meu espírito não desceu às n evoas do misticismo. Seria recair do delírio do terror tantas vezes condenado. Eu esper o serenamente o último lampejo da vida, sem abjurar as minhas crenças, enquanto fulgorosamente florescer o meu espírito. As palav ras de Edmundo tinh:un tons de ironia e de blasfemia. Houve um momento de pausa. O vento frio agitava a chama dos círios fune rários. A sua voz tornou-se mais profunda, e começava a ser áspera e rouca. - l\fas p erguntareis a ,rôs m esmos, se, ainda na extrema hora, não pereceu a minha visão, porque invoco a figura de um Deus ! Não é um apêlo à religiosidade ; é apenas a imprecação contra os destinos da natureza, é aJ>enas a revolta contra a matéria. Eu sei que caminho para o nada, para a aniquilação, para o re– pouso absoluto ! É a angú stia do próximo esfacelamento do meu ser, da dispersão do meu organismo, da minha sensibilidade. Vai cessar em mim a função suprema da matéria, vai perecer o m eu cérebro ! Vai emudecer para sempre, insensibilizar-se, voltar a inconsciência da baixa natureza, reduzir-se ao nada da argila informe. Ah ! Por que o organismo humano tão elevado, tão mara– vilhoso, há de desfazer-se tão fàcilmente como um pouco de pó ? Por que morrer a alma ? Eu não sinto a agonia do corpo, eu sinto a agonia da alma. É a saudade das emoções supremas, que se ilu– minara nos requintes da sup rema sensibilidade, que vai apagar-se, como uma chama errante, ao sõpro da m or te ! Ah ! o mundo abs• trato ! o meu paraíso, vou perdê-lo para sempre ! . .. A sua voz calou-se. Um a convulsão soergueu-lhe o peito ema– grecido ; as suas m ãos apertaram-se crispadas e uma n évoa desceu, empan ando os olhos luminosos. -É o último lampejo, disse êle, é a emoção final. E a sua voz era como um sõpro dalém túmulo. Depois ficou imóvel, aspirando o ar ansiadamente. Ergui-me, tomei-lhe o pulso esvaido. E vi sôbre o leito os vultos negros que se inclinavam, acompanhando-lhe, aterrados, os últimos instantes. Estranha angústia sufocava-me. A ànsia do agonizante pene– trava tôdas as almas. Dura nte longos minutos velamos a sua agonia. Repentina.mente, o se u aspecto tornou-se de uma gra nde serenidade. Cessaram os relâm pagos e as con vulsões que lhe passavam ,,elos olhos e pelas faces. Todo o seu corpo se imobilizou, e a sua fronte lívida fulgiu como o mármore, numa expressão imaterial. Estava morto. De pé, junto ao leito, cu fiquei contemplando-o, ahsorvido em extase doloroso. Estava aniquilado ! Era um pouco de matéria inerte, sem vit,alidade, que em b reve se decomporia para volt.ar às formas rudimen tares e ante riores, em que os corpos não slio abalados por supremos descspê ros, por supremas angústias, e vivem a dormecidos no torpor da inconsciência. Soluços sufocados vieram despertar-m e. Alta e cu rvada pela agonia, vi a mulher que i;omo uma vuão se destac!l imóvel 'luando l)ençtrei llll alcova. De&•

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