Revista da Academia Paraense de Letras 1952 (Janeiro v2 ex2)

. 162 REVISTA DA ACADEMIA PARAENS,E DE LETRAS PERANTE A MORTE De MOREIRA DE SOUSA on dlralt qu' il y a en uous deux ua tures : une animale non raisonnable qui commande Bautre humaine et intelligent qui succombe. A. MOSSO. Quando entrei na alcova em que jazia enrermo Edmundo Este– vão, fui surpreend ido por um espetáculo que me gelou e m e pren– deu imóvel, por alg uns segundos no limiar da porta. f:le estava no leito, soerguido e agitado, s uplicando com voz magoada a figura de um Cristo, para vela r-lhe os últimos m om entos. Os lençóis estavam revolvidos, os seus braços se esguiam trêmulos e ansiosos, e os seus cabelos negros cobriam em desalinh o a larga testa de mármore. Círios derramavam uma luz fúnebre. Havia um i:rupo de vultos tra– jando de preto voltados para êle. Nesse momento alguns se ergueram e se debruçavam 110 leito para arrancá-lo da intensa afllçáo cm que se estorcia. A alcova tinha um ar de desordem ; os cr iados, ch eios de . presteza, . cruza– vam-se pelo a posento. Apenas, cm Crente à porta, em que eu estacara imóvel, havia uma mulher a lta e pálida, en costada a um reposteiro e que em completa imobilidade assistia a agitação elo enfermo. Edmundo, ao por, de súbito, os olhos sôbre mim, pa receu tam– bém surpreender-se e rcpcntt.aamcnte pareceu-me que se acaln1av a ; e os seus olhos profundos, muito abertos, fitavam-me com expres- são de terror. . A princípio, o inesperado da cena petrificando-me, tornou-me insensível ; as idéias fugiram-me da mente ; fez-se a escuridão no meu cérebro. Mas logo estremeci, como percor rido por um cala– frio. E um quadro cheio de tristeza povoou-me a imaginação. Era a visão dolorosa de uma região eclênica, com clsmatlvas Iluminações noturnas, refletindo-se nas á,:uas de um rio tranc1ullo, a estender para o alto a· sua cla ridade silente, como doces palpi– tações da alma apocalítica da treva. E esta v isão foi, quase insen– sivelmente, diminuindo de fulgor ; as luzes. em agonia lenta, roram, pouco a pouco, perdendo de intensidade, até q ue fica ram reduzidas a chamejame ntos indecisos ; e a região sombria, rodeada de florestas escuras, transformou-se numa faixa esbranquiçada , que, por rim, se perdeu, contundidaf no cáos da noite impenetrável. Imedia tamente, aclarou-se a minha imaginação. Edmundo Es– tevão, o mais forte espírito que eu jamais vira, q,ue aos v inte anos abjurara tôdas as reli,:iões, c1ue não compreendia a fraqueza hu– mano arrimada aos mitos, cheia de idéias supersticiosas. Edmundo, que se revoltara tantas vezes contra a fraqueza dos que passavam a vida a maldizer as divindades e na hora da morte se convertiam, ignominiosamente com pelidos pelo assombro, ali estava, como tantos outros, a clamar por Deas, converti.do na í1ltima agonia, recaindo na m esma fraqueza abominada, ch eia do m esmo terror do espectro da morte, da nefanda, da corruptora morte ! Adiantei-me para o leito, e toquei-lhe a s m ãos emagrecidas. Trouxeram-lhe um Cristo de marfim, que êle tomou entre as m ãos e contemplou longamente. Depois, pou sou-o sôbre o leito. E os se u~ olhos, muito a bertos e profundos, fitaram-m e de novo, ainda ungidos de uma expressão de assombro. Falei consolando-o, ten– tando espera nçá-lo. i:le teve um sorriso de amargura, e disse-me que estava na sua última hora. Entretanto achava-se perfeitamente calmo, e a agitação, que reinava na alco~a, desaparecera. Foi então que lhe examinei bem o rosto macilento e todo o seu aspecto de moribundo a quem a morte próxima cobria Já de l!videz. E senti arrependimento e remorso de ter deixado perceber no olhar a minha admiração e surpresa pela transformação por que passa~a <! se_u espírito. Mas o seu olha r, agora tranquilo, onde trans– parecia mteiramente a sua alma pouco a pouco me trouxe a se- renidade. ' Por algum t em po nos fitamos mudos e observando-nos t riste– mente . As noss:is imaginações foram assaltadas pelas mesmas idéias dolorosas. Sentiamo_s que, breve, estávamos separados pela morte. Já o seu todo desfigurado não resistia, talvez, senão a uma curta hora, estava presl:_es a regelar-se, a tornar-se Inanimado e insensí– vel, E a recordaçao dos dias passados, dos dias de nossa mocidade,

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