Revista da Academia Paraense de Letras 1964
REVISTA DA ACADEMIA PARAENSE DE LETRAS a alma sem teias, despida de preconceitos e falsos pudores, ca– paz de distinguir um·a praga - tinta-essência-beleza da lingua– gem do povo - de uma obcenidade que, esta sim, se embuça nas entrelinhas, nas capciosas reticências e eufemismos, com que se pretendia pássar sôbre a realidade na velha literatura do pó-de-arroz, tão ~o gôsto das almas requintadas. Essas que se apegam teimosam~nte à legenda, esquecidas talvez de que os clássicos de hoje foram os modernos, os inovadores de ontem - Mas aí teríamos Gil Vicente e sua desconcertante irreverên– cia. Desta linguagem-tema, desta fidelidade ao jargão, ao pi– toresco reboar do 2alavrã-0 impulsivo na expressão do homem do povo; agressividade de argumento com objetivo puramente catártico, sem males e sem malícia; frouxo do coração· que re– benta ao rolar da língua; blasfêmia de superfície que muita vez é carinho, proferido em tom de ternura, de cálido bem-querer - tal um "corninho" em voz de mãe paraense ou o clássico· ·"paidégua" no elogio de um "marreteiro" das docas do Ver-o– Pêso - o calão tem sua pureza defendida até nos Evangelhos quando consideram o que sai apenas da garganta e o que ver~ dadeiramente brota do coração, tem suas raízes na alma e dalí traz sua peçonha ... Jorge Amado, por exemplo, em "Os Velhos Marinhei– ros", naquela deliciosa estória do "Comandante" Vasco Mosco– so de Aragão, nos dá verdadeira aula de técnica literária na dosagem da praga como elemento decorativo de notável efeito pictórico, naquele crescendo em puro calão até ao explodir, com que, através do enrêdo, uma personagem secundária extravaza seu despeito, duvidando da autenticidade profissinal do pre– tenso "velho-lobo-do-mar"! E assim teríamos u~a infinidade de exemplos, a partir, se quiséramos, das "Memórias de um Sargento de Milícias" do nosso pioneiríssimo Manuel Antônio de Almeida. "Percebe-se hoje a idéia de uma nova e mais forte va– loriza_ção do elemento povo" - ~iz Alvaro L~ns em "Literatura e vida literária" - E torna-se evidente que esse mesmo estado do espírito vai projetar-s~ ~ influir 1?-ª liter_atu~a: Sim, pa~ece inevitável que iremos assistir ~ uma epoca hterana, sob o signo de inspirações e de fôrça_s vmdas do ,povo. Logo se deve explicar, porém, que nao se ,!ratara do que se_ chama habitualmente "literatura popular ou de qualquer c01sa pare– cida, querendo significar vulgaridad~ _ou simplis~o estético. Alguma coisa muito diferente _sem du~1da: um~ lite1~atura qu_e interprete o povo, sem que seJa popuhsta. Assim, nao se dei- ~ 192 -
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