Revista da Academia Paraense de Letras 1962

REVISTA DA ACADEMIA PARAENSE DE LETRAS vesse dormido e·sonhado, para nos apresentar aquela cêna do "so– pho ~o panaricio", que inconscientemente, da-nos a impressão de ~eseJos latentes, manifestados numa associação livre de idéias. · "Deixem-me sonhar, se é sonho". ' A realidade é o luto do mundo, o sonho é a gala. (o grifo ~ meu). Desde que a pena me trouxe até aqui, sinto-me rei e grande rei. Já uma vez fui santo e fiz milagres. Já fui dragão, jbis, tamanduá. Mas de tôdas as coisas·que tenho sido, em sonho, i1 que maior prazer me deu, foi panaricio. Questão de amôres. Eu suspirava por uma môça, que fugia aos meus suspiros. Uma noite, como lhe apertasse os dedos, interrogativamente, ela puxou 11 mão e deitou-me um tal olhar de desprezo, que me tonteou. Vaguei até tarde, jurei matá-la, recolhi-me e fui dormir. Dor– ipindo, sonhei que, sob a forma de panaricio, nascia e crescia no 9-edo da môça. O gôsto que tive, não se descreve, nem se ima– gina. É preciso ter sido ou ser panaricio, para entender êsse gozo tmico de doer em uma carne odiosa. Ela gemia, mordia os beiços, chorava, perdia o sono. E eu doia-lhe cada vez mais. Doendo, falava; dizia-lhe que o meu gesto de aféto não merecia o seu des– prezo e que era em vingança do que me fêz, que eu lhe dava agora aquela imensa dôr. Ela prometia a Nossa Senhora, sua madrinha, um dedo de cêra, se a dôr acabasse; mas eu ria-me e ia doendo. Nunca ~enti regalo semelhante ao meu despeito de tumôr. Mas nem tudo são panaricios. Há gozos, não tamanhos, mas ainda grandes e sadios. Esta noite, por exemplo, sonhei que era um casal de burros de bonde, creio que das laranjeiras. Co~o ~ que a minha consciência se poude dividir em duas, é que nao atino· há aí um curioso fenômeno para os estudiosos. (O grifo é meu)~ Mas a verdade é que era um casal de burros. Eu sentia que eramos gordos, tão gordos e tão fortes que pediamos ao co– cheiro por favor, que nos desse pancada, para não parecer que puxavamos de vontat!_e livre. ~ueriamos ser constrangidos. O cocheiro r.ecusava. Nao nos batia com gancho de ferro, nem com as pontas das rédeas, não nos fazia arfar, nem gemer, nem morrer. Não nos excitava sequer com estalos continuas de lingua no pala– dar. Ia cheio de si, como se a nossa robustez fôsse obra dele, e nós voamos. Pagou caro a gentileza, porque chegamos antes da :t,iora, e êle foi multado. Na ante-véspera tinha sonhado que era um mocinho de quinze a dezesseis anos, prestes a derrubar- êste mundo e a criar outro; tudo porque me deram a Lúcia de Lammermoor e a Sonam– bula. Quando eu senti no labio superior mais que um buçozinho, e na alma umas melodias novas e ternas, fiquei fóra de mim. Que Mephistopheles era êsse que me fizera voltar para traz ? Estava. -98 - -

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