Quero - 1939

• • • -Aquela, sim, pode-se dizer que passou a vida a fazer bem a todos. Ninguem sabe tôdas as caridades que tem feito. Santas como aquela nunca deviam morrer ... A senhora Robert mora por detraz da igreja. E' a única residencia apalaçada daquela aldeia deseflta, um casarão quadrado, sem pre– tensões arquitectónicas, rodeada dum vasto jar– dim, à antiga, próxima do pátio dos rendei– ros. E' a "Casa Antiga". A senhora Robert tem 75 anos. E' viuva; os seus quatro filhos morreram pequeninos. Atacada por uma grave lesão de coração, é tratada há muitas semanas por uma sobrinha– -neta, cujos pais habitam na cidade próxima. A' hora em que as luzes da aldeia se acendem, a moça vai e vem no quarto da do– ente, arrumando os remédios sôbre a cómoda, preparando a lamparina para a noite. -Sim, Tia, explica ela, queria mandar vir o médico. - Não servia para nada , Margarida . Viu- -me há tres dias ... Não... E' tudo inútil. .. O médico não me pode fazer coisa nenhuma. -Se êl e viesse, ficava eu menos inquieta. Mas quem mandar, debaixo duma neve destas! Não se pode mandar a sua carripana, com o velho cav"lo com pulmoeira. Com a fortuna da Tia, vivendo nesta aldeia sem comunicações, como é que nunca pensou, nem o Tio, em ar– ranjar um automovel ? No campo e longe de tudo, um automovel é coisa indispensável. - Não lhe sentíamos a falta ... Passáva– mos bem sem ele. E depois, é coisa muito cara um automovel e nós não éramos milionários. - Não lhe fazia falta! A Tia, tão bôa cristã , conden ada a nunca assi stir a uma cerimoni a religiosa, a um bom sermão, a uma reünião. Nesta hora em que há tanto que fazer! Os Ti os meteram-se muito socegadinhos no seu buraco; enterrara m-se vivos .. . E' muito caro um automovel, comparado com as van tagens que traz! São bem idéas do outro tempo! Mui to ca ro! ... Muito caro! . .. Mas se a Ti a tivesse um automovel , poderia contin ua r a traba lh ar, poderia continuar a se r uma católica militante. E Margarida, intransigente como tantas moças de hoje, que, de repente, sem refl ectir, julgam, falam e decidem, Marga rida di rigiu-se para a janela com o fim de puxar a cortina, 23 J. F. C. B. BELEM - PARÁ murmurando entre dentes: é a tal avareza dos antigos... A fé que não trabalha, nem produz, será uma fé sincera? Maria, a criada velha, entreabriu a porta: -Se a menina quer ir jantar, eu fico a acom– panhar a senhora. -A neve não · para, Maria? -Não, menina, e está-se a levantar vento norte. Amanhã está tudo gelado. A noite avança. A doente acaba de ter uma paragem de coração, que muito assustou a sobrinha, que julgou ter uma morta nos braços. Branca . como um lençol, a voz ofegante, a velhinha articula com dificuldade. -Ai, Margarida, sôfro, como nunca sofri. Não é do médico que eu preciso, é do padre. Por amor de Deus, filha, não me deixes morrer sem sacramentos. Quero um padre. - Beba êste remédio, Tiazinha. Essa crise vai passar. Sossegue, amanhã às 9 horas, o vi– gário do distrito visinho virá dizer missa. Há– de ve-lo. E depois, a Tia recebeu já a Extrema– -Unção há tres semanas. -Amanhã, minha filha, ia não vem a tempo. Compreendo. Tu não podes mandar à vila com êste tempo e é noite fechada ... Irei eu lamentar não ter um automovel? ! - Meu Deus, meu Deus, deixar-me-eis -Vós, abandonada, cu que sempre procurei ser- vir-Vos e amar-Vos... Deixar-me-eis Vós morrer sem o confôrto dum Padre, eu que procurei dar– Vos padres? - Padres I A Tia deu Padres a Nosso Se– nhor? - Sim, filha, o teu Tio e eu. Vocês os católicos de hoje andam, trabalham, dedicam– -se de corpo e alma às obras; nós... com– preendes. Éramos velhos. Pouco podíamos fazer, mas podíamos privar-nos. Depois da guerra o teu Tio e eu resolvemos não comprar o auto– movei que desejávamos ~ todos os anos enviá– vamos, para manter dois seminaristas, o di– nheiro que nos teria custado o carro apetecido. 10 1/2 da noite. A lua redonda sai das nuvens e a sua luz branda põe refllexoi aAu-

RkJQdWJsaXNoZXIy MjU4NjU0