Pará Ilustrado - 1943

PílGlílílS 08 0ílT8m 8 08 l-i0J8 / A poesia sentimentaí acabou. Devia natu– ralmente acabar assim que o amor se julgou superfluo no casamento do vate. Eram, nou– tro tempo, os poetas uns amadores vitalicios– que cantavam e amavam todas as meninas de uma ou duas freguezias; mas não casa– vam com elas . Enfeitavam-nas de flores para maridos maganões que sorriam deles _com uma piedade quasi benévola, e os tra– tavam com excesso de delicadeza, até ao re– quinte de os pqrem na rua com poucas ben– galadas . Os maridos, ás vezes, quando os poetas bisavam os seus cantares, faziam no espinhaço das esposas o compasso . Isto sou– be-se; a desordem de familia- constou cá fora, e o lirismo começou a cair como imor– tal. Ca-ido o lirismo, o poeta foi compreendido nas regras gerais do genero humano . Entrou a casar sem v.ersos. Em vez de perguntar á vizinha quantas estrelas tinha prediletas no azul, indagava quantos predios tinha o papá; e se era orfã e herdeira, não lhe azedava s~udades do progenitor com necrologias; ia ao cartorio do _escrivão do inventario exami– nar o formal de partilhas; e, recolhido ao silencio do seu ·gabinete com os· apontamen– tos, em vez de : Mulher amada, que o meu peito abrasas, escrevia: Por metade do predio da rua das Congostas . . .... .. ...... 2:750$000 Acabou assim a poesia amorosa. Não foi Charles Baudelaire, nem a devassidão dissol– vente do segundo imperio, nem os progres– sos da etnografia e da quimica, como pre– tende o sr . Guerra Junqueiro. A poesia sen– timental acabou porque poetas que exercitem a arte por amor da arte já não há nenhum, nem tão pouco ha mulheres que sintam no peito o vácuo dos sonetos; e, se acontece ainda aJguma experimentar vagados intimos e palpita-çõe_s extranhas - coisas que outro– ra se chamavam Vago aspirar de virginais enlêvos, come uma sandwich, um bife de grelha, e fica melhor . Elas, quando saíram do colegio, não traziam geografia e-ansias de .ideal : traziam clorose e fome . Desfibradas as cordas .da citara, era, não obstante, necessario e fatal que alguem can– tasse . O genio é rebelde : se o espesinham, ressalta. Alguns poetas, quais vasos de· por– celana fragil, não puderam conter as raízes da flor do sentimento que se lhes radicaram profundas e largas até os estourar em poe– mas, nem romahticos nem classicos. Seme– lhantes coisas são uns extratos sulfidricos necessarios ao riso moderno como o estrume á seiva das finas flores aromaticas : Como não podiam cantar com aplauso a violeta roxâ, cantam a alporca rubra. Que eu, a falar verdaq.e, não creio em Goe– the . Ele diz que não ha literatura classica nem romantica: ha literatura sã e literatu– ra podre. E re:r;iovar o feio e a podridão, - acrescenta Philarête Chasles - o falso e o terrível, o frer,.esi e a obsenidade, o imenso e o exagerado, pela enfermidade e pela de– mência, é facilima empresa. (1) Digam lá o que disserem os oraculos. A literatura não é Aristoteles, nem Hora.cio, nem Boileau, nem Goethe. A poesia, essen– cia fétida ou aromatica da literatura, é a expressão de uma ·época. "O feio é belo, e o belo é feio". Fair is foul, ana foul is fair, diz Shakespeare. Ontem cantava-se a so– ciedade dispeptica em uso de fígados de ba– calhau; hoje canta-se a sociedade podre em uso do proto-iodeto de mercurio. • • • Se a tranquilidade publica perdeu ou ga– nhou com o desuso do sentimentalismo, é outra questão. Creio que _a sociedade lucrou em pêso e perdeu em feitio. A mulher, ama– da do poeta e conhecida como tal, tinha cer– tó prestigio, e uns aromas particulares de grinaldas de rimas que lhe ajardinavam o sa– lão, a alcova, a igreja, o teatro, o passeio, a pr-aia e os senhos - sobretudo os sonhos quancio não procediam de ceias copiosas. Estes- aromas adelgaçavam-lhe o espírito; elas viam as cousas da vida a uma luz eletrica; tinham a palidez eburnea das Ofélias cuida– dosas dos seus doidos contrafeitos,· ás vezes sandeus legítimos; -sabiam traduzir Telemaco e os segredos da lua; mas não conheciam o processo de fazer bons caldos e marmeladas. Depois, as que entraram pela infiltração do matrimonio na substancia do poeta, caíram em si pasmadas e céticas, quando viram os (1) Psychologie social e, obra póstuma. maridos -preferirem a uma "Meditação" de Lamartine, um prato de espernegado. Eles é que as despoetizaram, os maridos, pedindo– lhes caldo substancial em vez de um cómo diz a trova. riso, liso, E as esl)osas, com o espírito engordurado da gula dos maridos, ensinam ás filhas o des– prêso pela velha poesia; e, quando as colhem de assalto embebidas no êxtase dum moço magro e macilento, dizem-lhes: "Vosso pai tambem assim era delgado e palido antes de casar, mas depois, com os caldos fortes, en– gordou". Estas palavras são o epitáfio do lirismo escrito no seio da geração nova. Toda a menina que prevê a poesia flutuante do es– poso consolidada em tecido celular, prefere as formas finas e flexíveis de um marido -sem exame de instrução primaria. 1879 ~ - ~.,.._,,.._.....,,.._,,..,~ POEMAS QUE .A VILA-DA-BARCA INSPIROU • ... &icaniam~ Teus olhos ficaram pregados na Barca ... · Depois qtre tu foste morar lá na Vila. a Barca onda cheia de luz, coitadinha/ Ouem foi o diabo que parliu o Tempo em oito peda·ços "'-- e me deu na bandeja elo m avo os teus olhos bonitos? Teus olhos ficaram pregados na Barca .. . G} □ [ill (!) [:] Eromos fres ... Ela estav~ sosinh/J mas estava com nós dois ... que a nossa acabou Ti-nha un;~ olh;s - tãõ "' gra~d;s ~"" tão burguezmenfe dominadores, pobreza incompree-ndida - _implorando piedade para eles ! -16- PARA' ILUSTRADO 23- 1 - · 194-3

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