Pará Ilustrado - 1943
m □ ~rrm lil □ m rnm rnrn•mm mmrn □ m ª ª ª O moleque Ozorio fôra tomado dos seus pais pelo juiz de orfãos. Era um presente .da autoridade em troca das marrecas salga– das, das novilhas gordas e dos cavalos que Zé-Iglezias trazia para Cachoeira a todas as autoridades e,. só · assim ninguem enxer– gava o contrabando de pirarucú, marrecas e plumas de garças que Zé-Iglezias trazia embrulhados nas velas da "Nova-Aliança". O espanhol, não se sabe como apareceu um dia em Santa-Cruz no Lago Ararí. Fa– lava fino ; quando falava arranhava as pala– vras. Era pequeno, curtinho mesmo. Ve– lhaco, mentiroso, mistüicador e contador de lorotas. Tinha um bigode que parecia uma tala segura ali por pouco tempo. Zé-Iglezias era o manda-chuva, o coronel Iglezias da redondeza, ficando rico á custa daquela gente do rio e do campo. Ele não falava, gritava com todo mundo e todos es– tavam seguros ao espanhol pelo seu comer– cio . A gente do rio enxergava Zé-Iglezias mo um milagre. Eles não tinham nada, não sabiam nada do mundo e aquele comer– ciante parecia um deus-branco com aquela tosse e aqueles gritos . Eles viviam no gran– de lago pescando pirarucú, pescada, quei– mando campo para pegar mussuans tudo para Zé-Iglezias. O comercio girava em torno dele. Comprava terreno, gado, fari– nha a troco de suas mercadorias. Tinha grandes conhecimentos na vila e na capital . Oferecia filhos alheios na cidade e com o conhecimento e as amizades do juiz tomava pobres meninos para irem sofrer em Belem, na casa alheia, onde eram tratados como bichos. O fim das pequenas era sempre a zona. Depois de fugas sucessivas encontravam ali a sua liberdade . Os mole– ques acabavam nas cadeias e deportados mais tarde para o Oiapóque, como ladrões. Tres dias antes de Zé-Iglezias ir para Be– lem o movimento era desusado em sua casa de comercio. Os gritos de Iglezias ecoavam pela casa toda. - Ladrões ! Estão me roubando, ladrões ! Vão trabalhar, ladrões !. . . Guilherme em– pacota essas pescadas antes que desapareçam. Vicente vai buscar o gado do compadre Ca– .Jandrini para embarcar amanhã ! Ozorio ! ô OZOrio ! Diabo ! Peste ! estás na vaga– bundagem !. . . Vai pegar umas marrecas desazadas para salgar. Preguiçoso, safado, filho da mãe !. . . Todos na casa corriam para cumprir as or– dens recebidas. Cada qual saia para o seu lado. O moleque Ozorio, nú, com uma vara na mão saiu em direção ao lugar seu conhe– cido onde sabia existir marrecas desazadas. Ouviu ainda de longe os gritos, o barulho que elas faziam no pequeno lago onde toma– vam banho. OZOrio aproxima-se sem medo. Sabia que aquelas marrecas não poderiam voar. A agua quente pelo sol tirara-lhes as penas das azas. Entrou nagua. Em pouco tempo aparecia só a cabeça do moleque. Começou a bater e a nadar atrás do bando das marre– cas assustadas e surpreendidas por não con– seguirem voar, fugir do moleque Ozorio. De– pois o seu corpo veio aumentando; o reba– nho, perto de quinhentas, ia em direção ao pequeno curral apropriado para aquele fim. O moleque ia assobiando, pensando em matar aquela porção de marrecas e depois, passar a noite tratando. Sentiu uma ligeira dor no seu pé. Deu um salto de gato ~ cha– mou um nome feio. A jararaca preparava– se para outro salto mas resolveu fugir. O moleque, quase noite, não reconheceu a co– bra. Continuou o seu serviço. O bando de marrecas entrou no curral, o moleque com a mesma vara começou a matá-las a torto e direita. Quando elas estavam quase mor– tas, começou a sentir que a vista lhe falta– va. Bateu ainda atôa pelo meio das mar– recas restantes. Já não tinha forças, a dentada da cobra estava doendo, doendo muito. Pouco a pouco foi sentindo um en– torpecimento. Aquilo parecia mais um gozo misturado com dores dos seus orgãos que pareciam estourar, desagregar-se uns dos outros, como se ele estivesse se desfazendo. Era como se fosse um sonho, qualquer coisa a querer abandonar o seu corpo. Os gritos das marrecas respondendo os das compa– nheiras que passavam voando pareciam lon– ge, muito longe. Largou a vara sem sentir e foi se deixando cair como se fosse dormir. Ficou no meio das marrecas. A perna es– tava roxa e inchada. Tinha, no entanto, a certeza que os seus olhos estavam abertos, bem abertos mas só parecia enxergar noite, escuridão ... Ele tinha a impressão de estar sonhando dentro de um outro mundo. o corpo, no entanto, contraia-se em espasmos horriveis. Mas Ozorio não sentia dores. Parecia um disco girando, girando. Depois uma panca– da brusca no seu cerebro e tudo parou . Um tetéu gritou estridentemente ao longe. Aquele grito foi ecoando na lonjura e perdeu– se na distancia. Ozorio era, agora, uma coi– sa atôa sangrando no meio da lama. As moscas brincavam no seu rosto; carapanãs eram bolas de sangue espalhadas pelo corpo nú. As marrecas continuavam a gritar, a gritar para as companheiras lá fora. * * * Oito horas da noite . A casa de Zé-Igle- zias estava em reboliço. As canoas estavam cheias de cargas para seguir p 'ra Genipapo, na boca do Lago onde aguardava a "Nova– Aliança". O espanhol lembrou-se das -mar– recas. - O Ozorio já veio ? - Não senhô, nem noticia ! Lá fora a escuridão brincava diabolica– mente com os vagalumes. Havia certos con- trastes entre a noite e aquela dansa lumino– sa, vagueante, indecisa. A's vezes aumenta– va, outras diminuía. Zé-Iglezias lembrou-se dos presentes, da necessidade ·de levá-los para Cachoeira e para os fiscais de Belem. O moleque não chegava. Vadiação ! -O' Manoel! . . . Manda procurar esse cão! Que horas ele vai acabar com isso ? Gente miseravel ! Vadia! Não se pode !... Dois rapazes, empregados de Zé-Iglezias, sairam montados em boi. Foram em dire– ção ao pequeno lago . A luz indecisa do fa– rol deixava no campo a impressão de uma procissão funebre. Apearam na beira do curral e alumiaram por cima da tranca. Vi– ram as marrecas mortas e vivas. Depois o vulto do negrinho se desenhou num canto. Sua cara roxa e contorcida. Pelos olhos es– bugalhados e horríveis, pelos ouvidos e nariz havia espoucado sangue. Estava morto . Seus olhos ensanguentados pareciam pedir socorro ou antes, vingança ! Zé-Iglezias ficou danado : - E as marrecas ? -Tão lá. - Vão buscar, seus diabos ! Tragam tudo, matem as restantes. Deixem aquele diabo. Que lembrança !. . . Deixem, deixem ele lá, amanhã enterrem ele ! . Foi mesmo. Pela manhã, o moleque que era o escravo de z ·é-Iglezias e o protegido do juiz de orfãos; que recebia pancadas todos os dias sem ganhar um vintem, foi enter– rado . Abriram uma cova que parecia mais um buraco pela desagregação da beirada mole, junto mesmo ao curral das marrecas. Quase que não dão conta da agua. Meteram o cor– po do pretinho quase sentado dentro desse · buraco e a agua por diversas vezes fê-lo boiar, vindo o corpo para a superfície. Foram bus– car uma tranca do curral e imprensaram o corpo; depois, foram puxando a lama para querer tapar o buraco. Conseguiram. Mas os empregados de Zé-Iglezias não poderiam esquecer aqueles olhos, olhando ainda aquilo tudo como protestando contra aquela mise– ria toda, aquele abandono; contra a justiça oferecendo filhos alheios; contra o juiz, con– tra os máus, contra todos, finalmente. Aque– les olhos eram os olhos de todas as crianças arrancadas do seio da sua familia, para vi– ·ver nas casas dos Senhores da Vila e da Ca– pital, sofrendo a tragedia da sua vida enco– berta na deshumanidade dos homens de cul– tura, dos homens que sabiam ler e escrever e não sabiam ser bons e humanos ! * * * ~ dias depois dois vaqueiros viram um bando de urubús. - Aquilo deve ser alguma rês que empi– nou. -E'. - O inverno este ano foi mesmo de matar. ( Í/nka, M4w1afâó. de ciadde M4, ~d- fW. 1Ja/lá) [;](!](!)@._._.•,.__~.,,.___.· • ~ (D□(!)[i)(I)al'ilal 10~ ---nf(I)□[!](!] - [;l(!)§í1ITl11a f2~(3-Fone. 2184 Recebe gado dos seus· associados para talhar de sua conta e risco, cobrando modica comissão por esse serviço. assegurando, desse modo, os melhores preços do mercado -24- PARA' ILUSTRADO 9- l -1043
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