Pará Ilustrado - 1943
El}, rapaz ! O Florença stá aí ? ! ... Ta, sim sinhô. Tá dando as orde aos hôme !. .. Vai dizê p'ra ele qui o Manezinho stá is– perando na ponti !.. ; Quem assim falava era um caboclo ainda moço, robusto, empertigado no seu dolman azul de mescla, cabelos penteados até á nuca, empastados de vaselina barata.. . ~quanto esperava debruçado ao gradil da ve1ha ponte do logradouro, ia mirando o as– tro-rei que já descambava no horizonte exausto dos quefazeres do dia, penetrando nas florestas, devassando os caminhos toni– ficando a seiva dos troncos úmidos onde en– leadas aos devaneios se entrelaçam as para– sitas, ostentando o esplendor das cores e for– mas perfeitas que a Natureza lh'as deu. Aquecendo e despertando os ninhos, cha– mando á Vida os filhotes, secando as pluma– gens dos passaras que agradecidos, gorgeam, J' s~lt1tando de ramo em ramo, para depois smgrarem o espaço trinulando suas can– ções ! Desabrochando as flores, cujo balsa– mico perfume é levado aos longes pela brisa ~~e sopra ligeira. . . amornando o borbori– nno das aguas gelidas e cristalinas dos rega– tos, espeihando-se e multiplicando-se de re– flexos as cores esverdeadas das ondas man– sas dos rios. . . · Florencio, homem de quarenta anos, es– tampando na fisionomia visíveis traços de uma velhice prematura, cabelos grisalhos, era piloto e proprietario da barcaça - "Amor da minha vida", que se achava fundeada nesse porto. Recebendo o recado de Mané– zinho, companheiro da infancia, aprestou-se em ir ao seu encontro, subindo com passos cadenciados os degráus da escada da velha ponte, bamboleando o corpo afeito ás intem– peries marinhas, cabisbaixo, como se no seu cerebro ruminasse uma idéia tragica !... Olá, Manezinho, você pur cá ? !... E' verdadi, ha dois anos vivo aqui cumer– ciandu ! .. . Pois, já fez seis ano, qui não venho aqui nesti cafundó; derna qui aquela cabôca qui era - o amô da mia vida mi abandunú pur causa do Edimundu. Eu perdi tuda a alegria desti mundo, fiquei tão sarumbatico e quaji juru, nunca mais (As personagens deste conto são de inteira ficção; a semelhança a no– mes ou a fatos porventura conheci– dos, não passa de mera coincidencia). As enormes silhuetas dos arranha-céus do Rio apareciam já sob os raios do sol quasi no ocaso. Soavam as sirenas das fábricas e o tráfego aumentava com a avalanche humana invadindo as ruas, de regresso aos lares . O mormaço era terrivel. As businas das li– mousines ressoavam de par com os gritos dos garotos apregoando os vespertinos. A Gale– ria Cruzeiro estava apinhada. Criaturas en– cantadoras de sorrisos feiticeiros passavam continuamente provocando olhares atrevidos. de vez em quando um nortista reconhecia um amigo e, imediatamente, convidava-o a festejar o encontro. Antenor Silveira procurava justamente en– contrar um conterraneo, o qual, infalivel– mente, convidá-lo-ia a tomar qualquer cousa. Pobre Antenor; dono de um pergaminho conquistado brilhantemente na Faculdade de Direito da sua cidade natal, em meio o tur– biihão da metrópole ainda não conseguira emprêgo, vivendo até então, dos parcos re– cursos que, do longinquo seringa! remetia– lhe, raramente, o seu genitor, juntamente -14- pude gostá de mulhé ninhuma. E' tanto que condo stô no má, pareci qui Deus mi acom– panh_a, em terra, o diabo mi persegue !. .. Credo, Florença, qui diabo antão é esse ? !... As mulhé, hôme, as mulhé. . . Deus, condo fez o mundo pareci qui batisou elas com as aguas farsas do Inferno. . . em tuda mulhé eu vejo aquela cabôca marvada ! . . . ' . Nesse po1;to, eu cuncordo contigu, purquê, la no Paraizo, quem cumeu a maçã fui a Eva, mas quem si ingasgú . . . fui o Adão ! Por isso é qui nóis temu esse nó na guéla !... Não tou dizendo, Manezinho ? !. . . Ta bão Florença, vamu antão alegrá a guela na tasca, p 'ra dismanchá esse nó! .. . Mas. . . na do Edimundo não, Manezinho . Si eu mi defrontá com ele, não arespondo pur mim!. .. O que, Florença. Derna qui ele te roubú a cabôca, fui p'ras fazenda do pai dele, ven– .deu a tasca p'ro Zé Antonio, aquele rapazola do cabelo cor di fugo. Zé Antonio casú com a filha da velha Pulquéra, qui morava di junto dele, dismanchú a barraca, alargú a tasca, butou areia branca na porta e umas banquinha di ferro e mudou inté o nome ; agora é : - "A flô desti lugá" . . . não se chama mais tasca, é : - botequim !. . . Assim palestrando, chegaram ao botéco, onde se amesendaram .. . ••• A noite enluarada, já havia feito a sua en– trada triunfal, devassando os bêcos e recan– tos do logarejo, quando eles se preparavam para abandonar a "Flor deste logar"; mas ao longe avistaram dois cavaleiros que. vi– nham chegando á vila. Ispera, Manezinho, vamu yê quem é aquela genti qui vem aculá ! Edmundo e Jardelina não haviam reconhe– cido os dois amigos. Apeiaram-se, amarrando as montadas nu– ma arvore proxima ao botéco, e aproxima– ram-se ... Célere como um leopardo investindo a pre– sa, num salto felino, F'lorencio, que já o di– vulgara, manietou Edmundo e tremulo de raiva exclamou : - Vamus ajustá as conta ! Entregue as ar– ma si tivé ! A luta é di hôme p'ra hôme, s_eu de com aquela triste recomendação : " As cousas estão ruins; a borracha não tem pre– ço e é só o que te posso mandar agora. Estou velho, meu filho; procura vencer para aju– dar o teu pobre pai. .. " Antenor havia almoçado no "China" e não sabia aonde iria jantar, O dinheiro .qué possuía estava reservado para pa.gar _o alu– guel da sórdida agua-furtada, ná Tijuca, onde vivia quasi na miséria.. - Assim, com um pressentimento feliz voltou-se Antenor ao notar que lhe tocavam o braço . ~Jeronimo ! - Antenor !' - Quando chegaste ? - Ontem, vim tentar a sorte aqui, no Rio. Vamos tomar alguma cousa! - Não, obrigado; está na hora do jan– tar ... - P orisso mesmo; tomaremos um aperiti– vo e iremos jantar, depois do que faremos um passeio pela Avenida Atlantica. Faço questão de pagar tudo ! Aquela vóz de "pagar tudo", Antenor es– tremeceu de contentamento. Pudera! Aque– ie convite era uma dádiva dos céus. Por isso, aceitou-o imediatamente, antes que o amigo mudasse de assunto. PARA' ILUSTRADO bandido! ... As testemunhas da cena que se ia desenro– lando, eram - Zé Antonio, Manezinho e Jar– delina, a figura central da contenda, que semi-aparvalhada assistia muda! .. . A luta era encarniçada e já durava alguns minutos, levando vanta.gem Edmundo, ho-,– mem forte e moço. Rolavam na areia es– pumando e praguejando !. . . Num dado momento, como movida por um relampago, a cabocla corre aos fundos da bodega e armando-se com uma faca de cor– tar tabaco, volve ao terreno da luta. Vendo Edmundo montado em Florencio, procurando esgana-lo, enfia-lhe a faca pe– las costas até ao cabo, e .. . parte numa car– reira louca, em direção ao "Amor da minha vida " que se baloiçava ao contacto das ondas volumosas e espumantes, que se vinham que– brar na sua prôa, parecendo gargalhadas sar– cásticas do Destino, jogando-se no rio . .. ••• Pela manhã do dia seguinte, Florencio ta– citurno, caminhando lentamente, como os ursos ao acabar de dansar, vai seguindo rumo á embarcação. A massa já era compacta em redor do ca– daver entumecido da cabocla, que se achava estendido na ponte. · Florencia rompendo a turba, e numa con– trição sincera, recita esta oração : Ah ! cabôca, si eu subesse cumu tu mi quirias. Tu qui eras o amô da mia vida! Qui mi acarinhasti com essas mãos tão ma– cia cumu as plumagi dus passaru ! Qui fusti sacrificada ás caladas da noite e levada pri– sioneira pur aquele marvado ! . .. No altá do meu pensamentu acendu as vela das mias lagtima, e meu coração se ajoelha, fazendo uma prece ao teu amô de arma limpa!. . . A vida qui nóis levemo nesti mundo, é a mais prefeita das mintira !.. . • * * Minutos após o "Amor da minha vida", de velas desfraldadas, vagando sem rumo, afun– dava, levando a seu bordo estirado junto á escotilha, o cadaver do piloto, com os pul– sos golpeados, sangrando ! !. .. 1)üo.,,,, And 'feaJt Durante o jantar, no qual Antenor pro– curava esquecer os angustiosos dias de fome passados, durante doís anos de canseiras á procura de emprêgo, a palestra versou sobre a situação dos -ex-colegas de Faculdade. A sobre-mesa, Jeronimo procurou conhe'cer a - vida do amigo, a qual lhe parecia folgada, á deduzir pelo traje irrepreensível e decente do antigo companheiro de turma. Assim, num tom afetuoso, inquiriu : - E tu, que fazes ? Vencendo sempre ? Por momentos, Silveira sentiu o pudim amargar. Não querendo revelar sua verda– deira situação de aperturas, dominou-se e após sorver calmamente uns goles de cerveja respondeu: - Graças a Deus; vencendo sempre !.. . Trabalho pouco, ganho bastante, mas .. . gasto muito. Tenciono até assinar um vale amanhã. Sou advogado da ... da "Light". E tu, já tens colocação arranjada ? Trazes alguma recomendação ? - Não, companheiro; meus pais faleceram um ano depois de minha formatura. Rece– bi o peculio e aqui estou á procura de traba– lho. Após agradecer os pêsames, Jeronimo acrescentou : (Continúa na página 17) 9- 1 -- 1943
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