Pará Ilustrado - 1943
(J S YRUS Shortrib, o camaroteiro negro, ergueu a pesa.da cortina e olhou, a– través da nuvem de fumaça, o salão de fumar cachimbo e olhava para o _campo pela janelinha. Um moço, que tirava bafora– das de um cigano turco e que usava umas absurdas meias vermelhas, ouvia com inte– résse o terceiro pass!l,geiro - um senhor de uns trinta e cinco anos, metido num traje "beige". Apesar da fumarada espéssa, _Cyr,us .os reconheceu logo: o do cachimbo era o ocu– pante do leito n . 0 8; . os que conversavam eram os dos leitos ns. 6 e 3, respectivamente. O camaroteiro entrou no compartimento e dali passou· ao, banheiro. Com um pano lim– pou o lavatório é em seguida voltou para o carro-dormitório, pensando nessa coisa para a qual nunca conseguira achar explicação: por que motivo certos individuos compram bilhete de leito e, em vez de se deitarem, permane– cem horas a fio a envenenar os pulmões no salão de fumar ?• •. Ao chegar ao · outro extremo do carro, consultou o relogio: uma ~enos vinte ! .Fal– tavam apenas trinta e cinco minutos para chegar a Worcester. Mas a parada do trem naquela loca1ldade ~ão preocupava absoluta– mente o camaroteiro, pois os que ali embar– cavam instalavam-se, em geral, no carro Pull– man. Era um contratempo para êle que aque– les tres passageiros não se deitassem. ·Enquan– to não ·o <fizessei:n, Cyrus não podia pensar em dormir comodamente no salão de fumar, como era seu costume . Resignaão,- sentou-se num banqui'Ilho e encolheu-se, procurando cochilar um pouco. O rumor compassado do veículo em marcha começava a exercer seu efeito soporifero em Cyrus, quando · o passageiro do leito numero tres entrou no dormitório. Levava na mão o paletó, o colarinho e a gravata, como se vies– se ão quarto de banho . O camaroteiro pestanejou estremunhado e fez menção de se levantar. - Não se incoi#ode ·_ disse-lhe em voz 'baixa o passageiro. TMµbem pão é •necessário acender a luz. Enxergo perfeitamente. Cyrus esperou alguns minutos. Vira no salão de fumar, no assento ocupado pelo ho– mem do leito tres, uma revista Uustrada, e queria apropriar-se dela. Ia ,põr em pratica o seu proposito quando o . quadro .das campainhas lhe indicou que o chamavam do leito numeró dois. Era uma senhora com um menino. Uma criança terri– vel que estivera a chorar mais de meia hora. Talvez a senhora· qulzesse leite quente ou ou– tra qualquer coisa para o pequéno . Mas não. Ela queria• apenas que o cãma– roteiro fechasse a janela, porque o ar da noite podia resfriar o ·menino. Cyrus satisfez o de– sejo da passageira e saiu para o corredor . O trem diminuira a velocidade e· pouco depois parava em Worcester. Cyrus, mesmo do seu banco, olhou para a plataforma da es– tação. Havia ali umã. duzia. de pessôas, entre passageiros e amigos que êles se despedia!!}. Quando o com,boio retomou a marcha, o camaroteiro entrou novaménte no salão de fumar . O moço do leito seis bocejava, com a revista aberta sôbre os joelhos ." O do cachim– ;bo continuava olhando l·mpassivel a escuridão eia noite. De súbito, o moço ergueu-se e dirigiu-se . para o dormitório, levando com êle a revista. - Isso não é direito ! - protestou Cy– rus mentalmente. Bem podia deixar a revista, que é dêle. Entretanto, adiantou-se até o leito _nume– ro seis e levantou a cortina para dar passagem ao jovem. 6-3-943 • Agor.a só faltava que se fôsse deitar o do numero oito . Depois disso, Cyrus poderia re– pousar comodamente numa das poltronas do salão de fumar. Sôou outra vez a campainha. Era um c);l.amado do leito nove. O camaroteiro aten– deu-o e viu assomar entre as dobras da cor– tina a cara barbuda do passageiro q,ue em– barcára em South Station, o quai se deitára imediatamente, sem lhe dar o menor incomo– do. - Que manda, senhor ? - Estou morto de sêde. Quer fazer o fa- vor de me trazer um copo dágua ? Satisfeito com prestesa, o homem tomou o copo, bebeu dois ou tres góles e mergulhou novamente a cabeça na obscuridade, murmu– rando: - Muito obrigado. Cyrus voltou para o seu banco, ,que fica– va situado em frente ao leito numero seis. Démorou ali · um pouco, e depois foi ao salão de fumar, para ver se o ultimo passageiro in– sone já se retirára. Mas não. O homem con– tinuava impassivel, olhando pela janela. / Ouviu-se de novo o som da ca~ínha. Cyrus retrocedeu para o carro-dormitório. Chamava-o dessa vez o pas_sageiro do Jeito nu– mero tres : o homem qa roupa "beige". - Perdi meu al!lnete de gravata. Peço– lhe o favor de verificar se não o esqueci no quarto de banho. Talvez esteja em cima do lavatório ou em outro logar facll de encop.– trar. - Vou vêr, senhor. '- O camaroteiro acedeu ao ,pedi-do da me– lhor vontade. Aquele passageiro tinha a apa– rencia de um homem generoso, e certaxp.ente lhe daria uma bôa gorgêta. . O alfinete estava no logar indicado. Quan– do Cyrus atravessou o salão -de fumar, o ulti– mo retardário esvasiou o cachimbo, batendo-o contra a janela, levantou-se e seguiu o cama– roteiro, indo em seguida ocupar seu lelto. Cyrus entregou o alfinete ao dono e 'res– pirou -aliviado. Afinal ! Já podia 'pensar na sua sonéca. Consultou o relogio : duas me– nos vinte . Era tempo de deitar-se, pois o trem pararia ás tres na estação de Springfield. Passou · ao salão de fumar, levando um travesseiro e acomodou-se num dos assentos. Estava quasi adormecendo quando sentiu for– te pressão na boca e no·nariz. Abriu os o~os· sobressaltado; -qufz gritar, debateu-se violen– tamente . . . Depois, uma lassidão, que parecia dlluir-sê-lhe pelo corpo, fez-lhe perder a no– ção do que sudedia. Compreendeu, porém, que PARA' ILUSTRADO lhe haviam feito aspirar uma substancia es- . tra~a. forte, sufocante. · iDespertou ·com , a sensação de estar sen– do levanta.do no es,paço. . Pestanejou rapida– mente, Ilhando as luzes acêsas no této. Pouco a pouco foi Teconhecendo o Jogar em que se achava, e só então ,percebeu que a sua difi– culda:de em respirar provinha do pano que lhe tapava a boca. Depois verificou que estava manietado e amarrado á poltrona. Mas não compreendeu logo o significado de tudo aquilo. Tinha apenas a noção de que sucedera qualquer coisa de estranho, muito estranho. Aos ouvidos chegava-lhe um zumbido per– sistente, um rumor de vozes, que crescia, cres– cia, até transformar-se numa barafunda infer– nal. Eram os passageiros do carro-dormitório que se esganiçavam reclamando a presença do .camaroteiro. Nesse momento, abriu-se a porta que se– parava o salão de fumar ·do carro Pullman e apareceu o chefe do trem. Um minuto depois o cama.rotei.To estava desamarrado. Este ad– quirindo imediatamente ·a clareza de es.pirito, correu ao dormitório, seguido do chefe. O fleugmatico passageiro que fôra o ulti– mo a retirar-se do salão de fumar foi o pri– meiro que conseguiu fazer-se entender: ..:..... Sr. chefe, !ômos vitimas de um rou– bo ! A mim, pelo menos, roubaram-me a car– teira, que eu colocára debaixo do' travesseiro. - Com certeza foi o mesmo patife que me clorofomizop l - interveiu Cyrus. -E, dirigindo-se ao cavalheiro do leito nu– mero oito, indagou : - O senhor não viu ? Não o pegou ? Ah l Com (!Ue gana lhe arrebentaria as ventas l Mas o dialogo não poude continuar. To– dos os passageiros protestavam. Este reclama– va a carteira, aquele o relogio, aquele outro ·o alfinete de gravata. Cy11us, subitamen~e inspirado, consultou o seu rologio : - Duas e mel-a ! O ladrão não póde dei– xar de estar ainda no trem, pois desde que saímos de Worcester não paramos em estação alguma, e ainda !alta meia hora para chegar a Springfield, que é a iprimeira em que o trem se deterá. Mas voltando o olhar para a porta tra– zeira do dorIIl!ltório, emudeceu, ao vê-la aber– ta. Teria por all fugido o ladrão ? Não teve tempo de responder á sua pro– pria pergunta, No outro carro-dormitório, a cargo do seu coléga Francis, se d-esencadeára uma algazarra de mil demônios. Cyrus correu , para ver do que se tratava e verificou que se déra o mesmo que no seu carro. Francis, como êle, tam;j)em fôra clorofomizado e manieta-do; ajudou o coléga a desprender-se das ligaduras e voltou imediatamente para junto do chefe do trem. Este conseguira acalmar um pouco os passag_ei.ros, a maioria dos quais começava a vestir-se. Quem berrava como um bezerro era o pequeno do leito dois. - Quais dos senhores perderam objétos de valor ? - inquiriu o chefe. / Aqullo foi um pandemônio. Todos gri– tavam ao mesmo tempo. - Senhoras l - tro:vejou o chefe. Um pouco de calma por favor ! Vamos fa~er uma. chamada e cada um irá respondendo por sua vez. Cyrus, avise 'ª Francis que vamos fazei· o mesmo no seu carro e diga-lhe que vá á lo– comotiva e previna ao maquinista de que po1 motivo algum deve parar o trem. - Traga lapis e um papel. Pronto ! ... Comecemos. (Contlnúa na pártna 7 -3 (
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