Ephemeris, v.1, n.1, agosto de 1916. 115 p.
EPHEMERIS 45 tenho visto, era um espírito de contradicção insupportavel. Si lhe perguntasse eu qualquer cousa sobre a sua vida, sys– tematicamente calava-se; si não, dizia-me tudo, fazia-me confidencias. Havia três dias, de facto, que irrompera em minha casa, vindo da Europa, mais velho, desleixado, com princí– pios de rugas, os bigodes cabidos aos cantos da bocca, sozinho, e a pedir-me agasalho. Aboletou-se e até essa fina tarde de Maio guardára um silencio de trapista. . Nunca alludiu á mulher, Rosalia Quaresma, belleza classka, luminosa, que troçou consideravelmente de toda uma legião de apaixonados, entre os quaes me inscrevo, ·como um dos enragé,; e dos mais dolorosamente escorraçados para vir cahir, morta de paixão, fremente de volupia, nos braços supufinos do Quaresma, rendida a um mundo ful· gural de paradoxos e boidades, vinco luminoso rlo tempera– mento extranho do meu amigo. _ Depois, viamol-a vagamente nas suas reuniões, ao lado !].e Quaresma, hieratica e distante como um astro. O casal embarcou para a Europa. Um escasso postal ·de Londres ou Stockolmo, de Petersburgo ou Veneza, dizia– nos de fugida da vida errante do casal Quaresma, unido na mesma exaltação ou na mesma sacied ade, a procurar emo– ções sob a poeira sapiente de Paris ou a meditar rithmos á sombra alada do leão de S. Pedro. A' sua pergunta sorri indifferen te p ara lhe dizer: -Sou pouco curioso. Ouço si me dizem; caso contra– rio perscruto e si não acho, conformo-me. Rimos, e Quaresma, subitamente serio, sacudiu a pon– ta do charuto, enxugou de um trago o copo e começou tris· temente: -Deixei a Rosalia num hotel, num qualquer buraco da Suissa. Deixei ... deixei .. . digo mal; fugi-lhe miseraYelmente como se o clelicto f~sse meu. Elia enganou-me na Italia. _Tive vontade de a matar. Curvou-se, rastejou, os olhos ar– dentes comó tóchas, a implorar perdão, &rrastando-se no tapete. Naquelle rosto de maravilha, desfeito, vermelho do sulco das lagrimas, eu li todas as desgraças e, no emtanto, nada fiz. Levantei-a. Foi a minha perdição. Devia ter-lhe ba– tido. D0via tel-a humilhado, mostrado a minha superiorida– de, a sua obrigação de me ser fiel. Nada fiz. Humilhei-me apanhando-a do tapete como uma relíquia, afagando-a como uma creança. Só o que apavora pela forc:a do musculo ou pela força do mysterio crêa a lealdade e o amôr. Parou um momento, o olhar dm:o fixado no bico do :sapato, reaccendeu o charuto e continuou:
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