A Tribuna, v.3, n.58, janeiro de 1928. 40 p.

E'_r a uma noite de ter ça- feira de Carna val. As ruas estav·am envadidas por uma multidão immensa e folga – zã . Bandos de mascarados loqua– zes formigavam nas calçadas com ruidosa alegria e ditos graciosos, emquanto os guizos dos capuzes ofíer eciam tàmbem com seu me– tallico chocalhar notas de conten– tamento. Do interiot' de algumas casas vinham gri tos de surpresa ·e gargalhadas intermi naveis . Per– cebiam-se, tambem, c o n f_ usas, notas escapadas de algum piano, a cujos accôrdes , provavelmen te, dansarfam os mascarados envol– vidos caprichosamente por ser– pentinas multicores. Eu, en vergando um dominó cer ej a , ,caminhava depressa em demanda do theatro onde se r ea– lisava o tradicional baile publico. Quando ali penetrei, o especta- . cuia que se offerecia á minha ·vista . era muito formo,:;o e suggestivo. Como é attrahente um baile de mascaras! · A passo · Ienfo 'e olhar ·perscru– tador, percorri o immenso salão, desejoso _de adivinhar, sob .as mascaras, um rosto amigo . Ao chegar ao fim da sala repa– rei numa mascarada de dominó côr de perola e mascara rosea, que , apoiada a uma coluum a . pa– recia ex tr anha ao bulicio que a cer cava e absorta em p r ofunda meditação . · P ar a passar um bocado, con-1-0 se diz vulgarmente, aproximei– me della. - Incognita, ainda que, certas mente, bella adoradora de Momo- mur murei com accento insi•nuante e caricioso- não dese– jas embriagar-te com phrases de amor e confundir-te ness e turbi– llíão de aleg ria que nos cerca'.? Ao escutar minha voz, a mas– carada estremeceu como se des- · pertasse de um somno profundo; ' fixou em mim suas pupillas dimi– nuídas pelos pequenos orifícios da mascara e articulou alg umas palavras que, embora não a s ti– vesse e11tendido, me pareceram p r onundadas com accento triste. Tomei-a suavem~nte pelo bra– çq e, enthusiasmado, q uiz levar mais combustível áquella. formo– sa fogueira de bulicio e bom hu- mQfi,-! ~ ,· . ' O CONTO DE HOJE Uma hora depois nos dirigimos :;. uma mesinha ao lado_ da qual dormitava o « garçon » . · Resistinqo ás minhas repetidas exigenciàs , minha companheira negou-se, terminantemente, ades– pojar-se da mascara e eniciou a ceia_levantando graciosamente o plissado que lhe servia de remate. A' sobremesa, como se o vinho fosse um poderoso acicate, ini– ciou•se o « flirt » . A's minhas ardentes declara– ções, quasi não respondia e ainda evitava que eu acariciasse suas mãos brancas e delicadas. Ante essas escaramuças, que eu julgava tactica de mulher ladina, crescia o meu enthusiasrno e o assedio amoroso era cada vez mais vahemente. Bruscamente,"ininha companhei– ra pareceu tomar uma resolu ção; meneou a cabeça como se desejas– sê afugentar '.álgumq' idéà, e. 'fi– xando seu olhar em mim, com firmeza, falou-me em tom triste: -O _ senhor não julgue que eu ·seja càmó tantas outras: . .· Só á idéa de que as apparencias me contlemnam e de que me tomem por tal, me faz soffrer horrível- , mente. Não me guiou aqui a festa; não vim em busca de horas ·de pra– zer nem tampouco me conduziu o vicio. Foi o amor materno que me impelliu áté aqui. Sou viuva; ainda não faz um anno que meu esposo se foi para sempre, deixando-me; como unica herança, quatro erianças de tenra idade. 1. , Desde a morte 'ile meu marido · a miseria foi-se tornando para comnosco cada vez mais intima; suas garras teneb r osas cravaram– se inclementes no meu humilde lar; e neste momento em que eu ouço musica e envergo este do- , minó , m eus -filh os corno ironicos contraste , tal vez agoni sem - de , fome e frio. · A fa lta de costaras, nestes ulti– mos dias, foram a causa de meus pequeQos permanecerem em je– jum desde hontem. Hoje, os po– bresinhos deitaram-se tiritando. Eu, par a consolai-os. para acal– mar-lhes a angustia, prometti– lhes, ao despertar, um abuntante almoço. eôs míseros fecharam os olhinhos sor.i:indo ante tão . far-. TRíBUNA ' -gueira perspectiva. l\llinh a pro– mes sa, porém, foi só para lhes dar animo, p ois de antemão sa– bia que não podia cumpril-a; to– das as portas estavam fechada s para mim; só me · r estava uma; qne jamais fran.qneiJ.ria: a da d es– honra. As innocentes crianças dorn'l i• am estreitamente abraçadas, afim de afugentar o frio. · Subitamente, toniei uma re;:;o– lucão; cobri-me com um velho mánto, e, soluçando, afastei-me de casa. l\llornento:=, depois, inf>tal– lada no vão de urna porta, implo 4 rava com lagrimas nos olhos a. caridade publica, porém a gente que passav:;t estava demasiado alegre para r eparar na dôr, para occu par-se da miseria . Varios pu– nhados de farinha -e muitas pJu·a~ ses grosseiras foram as únicas esmolas ironicas obtidas durante aíl '. dua.13 horas amargas em que, com tom supplicante e enterneci– do, permaneci mendigando. Desolada, regressei ao meu Jrn– milde aposentá'; meus filhos ct-or,· miam, e ao menorzinho a forno fazia-lhe murmurar em son hos: « Pã0... pão.. .,:, muito pão. ,, i!- _ : _ Ante essas ·despedaçadoras pa - , lavras, minha vista torvou-se e a ·cohesão das idéas fug iu de mim , fazendo tomar uma- r esolu- · ção suprema. Sim, tudo, áinda o mais humilhante sacrificio para evitar que esses amados seres sóffressem o atroz suppli cio ·que lhes estava r eservado: a morte pela fome! 001110 um automato, tirei do fundo do bahú desmantelado o · velho dominó e a niasc:ll'a que enver go. Pobres ornamentos re s– tos de dias feli zes, naufragas sttl– vo s, de vido no seu escasso _valor, á s garras do adé lo ... · Sem atrever-me olhar o retrato de meu esposo, pois -me .par ecia profanar sua memoria com o . acto que ia praticar , sahi -· nova– mente do meu cubicul9->e com an– dar ineerto e cambalifán te, com'o se marcliassc para o patíbulo, pe– netrei neste tbeatr o, decidi da a tudo; s im, e tudo ar;·ostar para libertar meus filhos da morte. Occulta a tra z duquclla col muna,. per maneci muito tempo . A rn usi· ca cheg ava a. m()US o_uvidos como , se. v.tesse de n:i u~t.o ]Q!Jgf)-j··.as dan -,

RkJQdWJsaXNoZXIy MjU4NjU0