A Tribuna, v.3, n.58, janeiro de 1928. 40 p.

- E viu-a morta ? - Morta. Branca e hirta. Morta. Cerrado o veliario velludico das palpe– bras sobre a tarde dolente dos olhos que reflectiran1 tanto o, meus olhos; fechada a boca, que me confessára tan– ta vez amoravelmente os éstos puros do coração abenç:x1do; serena a face branca que ;, morte pallidecia suave– mente como a cêra; frios os cabellos de ouro que eu tanta vez affaguei; frias as mãos cruzadas sobre o peito parado, - mãos cameliaes que beijei como a uma santa, purissimàmente, peito que pulsou de amor - branca e hirta, mor– ta. Não sei porque a app,mçao de ma– gua, a tetrica apparição de Marià Cla– risse, no sonho breve, · ~quell a noite que era de luar, de ameníssimo luar de calmiJ e aroma. . . Era preferivel vel-a morta, hirta e branca ; morta en– tre rosas brancas que eu houvesse des– petalado sobre o coração hirto e gela– do e sobre a tumba fria e cemiterial, que os chorões ·Ianguid0s haveriam de affagar depois ao sussurro dos ramos pf::ndulos. · ~ E amou-a ·tanto! ' -Tanto. Talvez por isso mesmo. As dôres dos amores epl1emeros são sombras aligeras gue passam. A dos amores profundos ficam no coração, perennes como a desventura e o so - nho. E a minha dôr é maior porque sciu um ingrnto qu': não commetteu ingratidão, um condemnado im1ocente, urn peccador sem peccado: O homem é um irresponsavel no vae-vem incons– tante d,1 vida . Não age por vontade propria : obedece a um mysterioso de– sígnio. E ha destinos subtis que se não conhecem, mas aos quaes nos cscr.;vi– samos inteiramente. - Eu nâo podiá ser ingrato nunca . Ma– ria Clarisse era candida, bóa e leal. Lealíssima. Eu sincero . A existtncia era vista por nós atra– vés do mesmo vidro côr de rosa e pela janella do nosso affecto. viamas o mes– m o céo azul e sem nuvem. Nunca blas– phemámos. Antes resámo:o muitas ve– zes ab pé do mesmo altar e ao mesmo santo_, pedindo pd;:; ventura e,iterna d<! nós ambos. ·E a vida seria para o casal novo e alacre a mesma estrada florente e suave, sob um soi cl:..ro e c:ilir!o e cheia de sombras ineffaveis_ Ma.ôa Clarisse era immaculada . Pa– rece <iJUe só vezes raras, affagaodo-lhe a ca~eça em h.Gras de melancolia, to– quei '-,cotn os meus labios n,:; poeira doirada dos seus 'cabellos, bu puz de encontro ao meu seio, delicadamente, o seu coração ,1 pulsar inquieto. E tanto mais eu queria que fosse lis– sim, que ella continuasse assim, puris– siman1ente angelica, quando ella era minha, qua11cb seri:1 unicamente mi– nha 11ara. todo tçirmento e gloria deste mundo_ · E era natural que na t'xpans5o jubi– losa do nosso affécto, ao fluido da ·pai, xão que nos apprcxirnav,1 C entontecia, o beijo fosse o se!lo melhor da unifica– ção das nossas almas; ·era natural que em horas de enternecimento meus la– bios tocassem, como a uma branta ca– melia immácu'a, a rosa fresc,l da sua face, o crepusculo quente dos seus olho5, a sua boca. · Mas eu tinha pudor dessa ·profana– ção e a ia querendo mais. Maria Clarisse parecia admirzr isso ou naturalmente confiava em mim, en– tregava-se-me confiadamente - o que me envaidecia e levava mais longe o meu enlevo e os meus escrupulos. - Essas recordacões... - . . . doe-me c~mo acúleos crueis. Ha u;11a inutili:fade pungente no revol – ver cousas mortas. Um prazer marty– risante, inexplicavel. · Uma vo!upia re– t1 ospec,iva que é como a saudade. cm resurreicão tormentosa. Oe\·ia -se PS– quecer ~ passado, sepultai-o no esque– cimento. E a recordacão de Maria Cla– risse é-rrie dolorosam 0 rnte angustiosa ... l 1 - Arrufaram-se . . . RUEM quizer '.rajar elegante– Y mente e vestir as m:11s novas e bellas fazendas. deve procurar a C / SA RAMOS ■IHIIIJlllllJIIIIIJIGLll'llllLI 1 ... 1... LJ~l- 1 1 -' U ..... ■!IF.Jl!WMQlf11011HIIJIUl:IIII~ A TRíBUNA - Sei lá. Houve qualquer cousa en- it tre nós, ou não houve nada. Descon– fianças, ciumes, que a saudade ~em con- .· solo tornav:1 hostis. Viviamos longe e vozes ck inveja e de odio sen.eavam torpezas, punham fel no coração de , Maria Clarisse ... Tal vez o ue tivesse razão. Somos na vid:1 como a folha fanada que a corrente arreb,1ta, que as aguas levam na espumarad,l que fervilha. Possivel– mente sem querer, ao léo da vida, como a mariposa que a chamma attra– iu e prendeu, eu esque€i a que me ama– va sinceramente € deixei-me- soffrer fila illusâD de que· estw:1 sendo féiiz. - Um sonho. - Pesadello, diga antes. Quando desp~rtei de todo havia uma illusão de rúenos e uma paixão em ruinas. - Eutre · nós dous ergueu-se um mundo de i1:differe11ça, ou eu emquan– to dizia pue Maria Cla,isse era a noi– va mais lcaldosa e infeliz do mundo, confiante nella, ella me dizia o rnai,, ingrato namorado que a terra jamais vira. · Depois foi a nnpçia triste das ali:nas qu~ se não queriam, que não sê po· diam querer, porque o primeiro amor • re vive numa immortalidalle que a. lem– brança perenne pernttúa. - Nupcia triste .. . - De angustia. Porque as nossas al- n1as buscaran1 alnias dê'sencuntn)d:ls e os nossos corações pursa,ram por oLitros corações gue não eram aquelies da· fre– mencia do primeiro an:or. Hoje sofüos como duas creaturas que envelhecem, indifferentes pedindo ao céo que niio nos desperte' ;rnnca a recoribçào do tempo de ouro que st' foi ... - Viu-a morta em sonho ... - Morta. Hirta e branca. Mor,a. E quem sabe senão seria melhor vel-a assim , inaeimada de vez, paralysado para sempre o cryração, cerrado, de ·:ez os olhos lindos, fechada pa:-a sêrn pr~ à boca breve e pura , morta e hirta? Não é Maria Clarisse uma creatura mort.1 a quen, 21110 atravéz da · lem– brança, na saudade constante que n'io e~maece nem fenece? Não é ella que me angusti:1- c0m a recordação das ho~ ras lucidas vi'"i,'as, cnmo se tosse at propria saudade d~lla morta sangrando no meu corado ? Era bem i;1elhor vel-a 1;m ort:1, co1110 no sonho dàque!Li noite, branca e hir– ta, morta para todo o sempre. Rio . LARLOS RUBENS

RkJQdWJsaXNoZXIy MjU4NjU0