MARANHÃO, Haroldo. Flauta de bambu. Rio de Janeiro: MOBRAL, 1982. 64 p.

livro mais importante depois da Bíblia, e a que não chamo de Livro do Amor, com maiúsculas, pelo temor de que me hospedem a contragosto numa Academia de Letras. De tal compêndio não chegou a ler nem ao menos o prefácio, muito embora sua barba já se alastrasse pela cara. Não teria sido por indiferença, por timidez talvez; com certeza há de haver favorecido essa omissão a espécie de vida que Lopes se impusera, lendo com incomparável fúria, ou melhor, talvez comparável à dos homicidas passionais, que matam e não abandonam a carne morta, senão depois de havê-la picado mil vezes, dilacerando os músculos com a ponta do punhal. Na verdade, necessário seria motivo muito intimativo para roubar Prudên– cio aos seus capítulos, atraindo-lhe o interesse para outro objeto que não fossem as letras impressas. Esse motivo veemente sucedeu na pessoa de uma loura assim, de olhos assim, de pescoço assim e de tudo o mais assim. Teve a loura o mérito de subtrair Prudêncio Lopes por alguns momentos à sua biblioteca, justamente o tempo indispensável a permutarem votos de amor e as alianças matrimoniais, casamento sem noivado. Casado, revelou– se Lopes marido incensurável, até porque, se lhe faltava tradição galante, lhe abundavam receitas e prescrições úteis obtidas em compêndios espe– cializados e a que soube dar adequada aplicação. Se não se fez ministro nem papa, Prudêncio Lopes fez coisa talvez melhor: fez-se rico. E a vida corria-lhe leve como um sorvete, embalada pelo que mais amava: os livros, o talão de cheques, um cachorro, os filhos e a mulher, na graduação afetiva acima especificada. A essa altura, quando a!i coisas estavam, cada qual, no seu lugar, voejou um urubu no céu sem nuvens de Prudêncio Lopes. Do urubu e dos seus vôos, daremos conta no capítulo a seguir. 48

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