MARANHÃO, Haroldo. Flauta de bambu. Rio de Janeiro: MOBRAL, 1982. 64 p.

Prudêncio Lopes deve ter nascido soletrando. PRUDÊNCIO LOPES A imagem pretende oferecer espécie de figuração moral do futuro comedor de livros. Porque Prudêncio Lopes na vida foi exatamente isto: um come– dor de livros. Não tenho dúvidas de que, se tivesse podido, teria arrebatado o missal do padre que lhe impôs o batismo, para no livro santo febrilmente enveredar os olhos. Ao livrar-se das fraldas e quando pôde aprumar-se e andar, deu logo mos– tras dessa paixão pelos papéis impressos. Seus objetos de brincar eram os livros, que folheava esquecidamente, com aptidão de ledor habitual, sem lhes machucar as páginas, embora bússola lhe faltasse para guiar-se na floresta tipográfica. Cresceu amigado aos tomos, dos quais só se afastava para cumprir os encargos que a ninguém podia delegar, como tomar banho e dormir. De começo, a singularidade homenageou a faceirice dos pais, em cujas cabeças entravam e se firmavam pensamentos imoderados. O pai enxergava-o minis– tro do Supremo;já a mãe não sabemos se mais temerária seria, ambicionan– do-o cardeal e quem sabe o que Deus mais pudesse destinar-lhe! Não ousava a mãe proclamar a ninguém o escondido desejo que lhe roubava às vezes o sono, receando ao mesmo tempo atrair o castigo dos céus e agourar o fedelho. Nem se fez ministro, nem chegou a papa, o sempre calado Prudêncio Lopes, em cuja alma não ressoavam as paternas ambições. Os sonhos em cuja garupa montava tinham o alcance do vôo dos patos. Mas sempre se graduou, menos porque julgasse valioso o canudo universitário, do que para dar gosto a seus autores. Prudêncio Lopes atravessou a puberdade e excedeu-a de muito, sem permi– tir-se intimidade com as saias. Nunca lhe interessou soletrar o bê-a-bá do 47

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