MARANHÃO, Haroldo. Flauta de bambu. Rio de Janeiro: MOBRAL, 1982. 64 p.
- Um livro? Inventou o título, logo-logo, A Xícara Misteriosa. E inventaria tudo o mais, esclareceu. Desejava apenas que eu dactilografasse, chegou a destam– par a máquina, bastaria escrever, só escrever, ele iria ditando, o começo, o meio e o fim. Na hora, não captei o alcance talvez profundo daquela decisão: de despejar e despojar a sua história, que não teria, claro, porte de livro, breve conto talvez, que não obstante ele surpreendera, inteira como um queijo, com– pacta, veraz, e que o oprimia possivelmente. Quem sabe um sonho? Ou a perfeita fabulação, a arquitetura linear da coisa criada, na sua mais inteiriça pureza? Xícara, misteriosa. Quem poderia supor misteriosa, uma xícara de louça, comum, com flores amarelas e azuis, desenhadas de forma convencional? Meu erro maior, e não me desculpo, residiu em manifestar vago desintoro - se, certo descrédito por ele pressentido, na viabilidade do projeto, nagu ]e mistério insólito centrado numa xícara: o editor não acreditou no lmpa– ,ciente autor, e a história queimava-lhe a cabeça, estou agora bem gur , se menos desatento fosse eu, perceberia que, nervoso, escarvava eh O como um touro espanhol. Premência havia sim, abriu a máquina, tr papel, os olhos brilhavam-lhe. O leite sumia. Quando se ia beber o café, desaparecia o café, bobin– e espanto. Só o que pude registrar, e mais :que nâ'o se tratava do ilu I nl m de circo, não, nada disso: truque absolutamente não havia. "O ml lórlo explico depois", mas não chegou a explicar. Mas como? O leite? Voava, voava. Voava? Via-se elevar num cól ro r pu• xo. O célere é do dactilógrafo, mas o repuxo é do autor, como d f1nlu a emigração do jato grosso e branco, que o ar engolia, e nem úmlda ficando a xícara, que, ia se ver, estava seca. Ah! Ah! E o café? Por quê? omo? Sei, tenho certeza que ele sabe, sabia sim. E um dia dirá, não mais a mim provavelmente. Bem que perguntei depois, insisti amável e fino o quanto pude, mas não deixando escapar toda a minha carga de impaciência e aflição. Apanhou umas bolas, deixou-as rolar. Apanhou lápis de cores e pôs-se a desenhar concentradamente, era um aeroporto, painel vasto abrangendo as pistas, para o que geminou quatro folhas de papel. As luzes da torre varrendo a área, luzes amarelas, luzes vermelhas, girando, cobrindo o largo espaço, havia aviõés grandes, jatos puros, jatos impuros, coabitando com teco-tecos, coexistindo todos, ricos aviões, aviões pobres, o que aliás não acontece, porque para estes se fazem aeroportos simples também: passagei– ros indo e vindo, desembarcando, embarcando, despedindo-se, no meio dos 44
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