MARANHÃO, Haroldo. Flauta de bambu. Rio de Janeiro: MOBRAL, 1982. 64 p.

UMLADRAO, ERA MADRUGADA Vi quando o ladrão saltou o muro e atingiu o quintal. Era madrugada e não espere a leitora romântica que me detenha em consi– derações sobre o luar, sobre a brisa despenteando as árvores, o silêncio fraturado por um galo rouco - e outras rosas de papel crepom. Primeiro, que o autor não faz concessões dessa espécie: não se permite intimidades com a linguagem dos poetas menores. Entre um bife bem metrificado e um soneto acebolado, inclino-me irresistivelmente pelo bife, e dessa predileção não faço mistérios, nem tenho por que recear o muxoxo dos eruditos. Depois, luar não havia. E quanto à brisa, idem: fazia um calor de banho turco e bastaria que alguém falasse em ovos para que eles se estrelassem, no ar. Minha situação não poderia ser mais infeliz: sem sono e suportando os roncos de minha sogra, que é proprietária de pulmões de barítono. O ladrão era homem idoso, circunstância que roubou a excitação do espetáculo. Pensei em descer, abrir-lhe a cozinha, bebermos juntos um ' café, comermos um pedaço de bolo. Confesso, sou um tipo até inamistoso, de amigos raros; falo pouco, jamais rio de anedotas e não visito ninguém. Mas naquele momento desejei estabelecer camaradagem com aquele ladrão velho, fazer-me amigo seu ainda que por quinze minutos. O que eu mais queria era escutar as histórias cheias de carne que um ladrão maduro com certeza terá para contar. Acabei por concluir sobre a tolice das minhas intenções: a simples gesto meu, mesmo de amizade, ele sumiria num pulo, escamoteado pelas sombras. Da janela acompanhava suas manobras no quintal, enfiando num saco as galinhas do meu vizinho, depois de imobilizá-las, como se as narcotizasse. A operação ao mesmo tempo fascinava e enternecia: era um lamentável homem velho, tristemente a roubar umas galinhas. A idade talvez lhe tiras– se gosto e aptidão para aventurar-se a outro gênero de assalto, furtar jóias, 33

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