MARANHÃO, Haroldo. Flauta de bambu. Rio de Janeiro: MOBRAL, 1982. 64 p.
PALAVRAS A VELHA AMIGA Tudo aconteceu e está acontecendo. Ainda falava, e andava, e ria e nos amava minha mãe quando trouxeram o cachorro para casa. Ele entrou alegre, parecia hóspede nosso já antigo e festejava a chegada com peripécias à volta de minhas irmãs, que ainda cresciam, Há cachorros de mau fígado, impossíveis de bem-querer; há cachorros que nascem em tapetes caros e morrem, enjoados, em tapetes caros, amornados pela intimidade de mulheres caras; há cachorros esportivos, para serem mostrados em manhã de sol; há cachorros de talento, que pintariam, toca– riam harpa, se de mãos humanas dispusessem, e à falta do que pulam geometricwnente nos circos, identificam com o focinho bandeiras de paí– ses, disputam o futebol, equilibram-se em fios de aço; há cachorros de vocação policial, que perseguem bandidos e bichos, acabando por dominá– los sob a ameaça dos seus incisivos; há cachorros que atuam nos gelos, que acodem os náufragos das neves e lhes prodigalizam bebidas quentes, pão, chocolate e bússola; e há cachorros apenas medíocres, que latem, mordem, comem, roem, lambem, manobram o rabo e namoram da maneira mais banal, até serem atropelados por um caminhão ou convertidos em barras de sabão. Nosso cachorro era assim, simplório cachorro, mas simpático, de simpatia de abrandar córneos corações. Não era cão para grandes platéias, nem fora distinguido por inteligência de exceção. Seu talento era a brejeirice e a meiguice, à somba das quais se meteu na família e de tal modo que se tornou querido e quase irmão. Nunca foi cachorro de agredir e causar o mal, mesmo simples vociferação inamistosa. Os estranhos dele recebiam efusões do seu rabo galhofeiro, que ria um riso felpudo no veloz ritmo de pêndulo descompassado. As meninas acabaram de crescer, casaram-se. Ausentou-se eternamente mi- 31
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