MARANHÃO, Haroldo. Flauta de bambu. Rio de Janeiro: MOBRAL, 1982. 64 p.
res dessas de a gente dizer: pisa em cima de mim, pisa. Mamã discretamente certificara-se de que o guarda-roupa do menino estava a carecer reforma de base, razão por que mandou vir quilos de casacos esporte, calças de todas as texturas, sapatos que afagavam italianíssimas gravatas, camisas de todas as cores do arco-íris, de forma que o bom caboclo se inserisse maciamente naquele contexto. Isso assim revelado poderá .denotar miserável capitulação minha à tirania dos pesos dos Avellaneda. Justiça a ambos se faça: mamã e papá faziam as coisas com tamanha sabedoria que não havia como não aceitar. Não aceitar seria ou loucura ou burrice.. Claro que à pessoa do defunto é que se dirigiam aqueles luxos todos. No caso, representava eu o bom boneco. Mas o papel do boneco eu não repelia, aceitava-o por gosto. Duvido que nas circunstâncias rejeitasse alguém esse acúmulo de bilhetes premiados! Omito, por me arderem as orelhas, pormenores constrangedores: afagos do velho, beijinhos da velha, a qual apreciava recolher-me ao regaço, nas horas da digestão do jantar, de maneira que ficasse eu instalado como o feto no embrulho uterino. Não posso dizer que me sentisse mal. Certa noite, à hora do chá, vagamente insinuei disposição de regressar ao Brasil. Por muito pouco o palácio não vem abaixo! Foi como se um feixe ' de raios os houvesse fulminado. E lá vieram as lamúrias, as cenas de fratu– rar coração de osso. Para resumir: propuseram adotar-me! Estudaria na Europa, teria mesada, automóvel, avião de recreio, e as férias nós as passa– ríamos juntos num destes lugares à minha escolha: vila nos arredores de Paris, Alpes suíços, Miami, Bermudas, Nova Iorque, Côte d'Azur, Acapul– co, não sei o que mais, onde possuíam casa montada o ano todo. (Admito que a história já esteja tresandando a folhetim vagabundo; que fazer? Não posso é adulterar os acontecimentos apenas para fugir ao lu– gar-comum das novelas que satisfazem o gosto da gente simples.) A essa altura, espalhara-se pelos quatro cantos de Buenos Aires que os Selgas Avellaneda adotariam um brasileiro, sósia do finado. O fato arras– tou-me para incômoda notoriedade, que me fazia sentir torrão de açúcar, à roda do qual voejavam senhoritas das melhores linhagens, mulheres ótimas. Elas viam-me como príncipe florentino cavalgando um cavalo branco. E porque aqui estou a carregar pedras, entra semana, sai semana, é de concluir-se que recusei a adoção e um futuro de rei da Arábia. Por quê? Cada qual que formule a sua própria resposta. Larguei os Selgas Avellaneda, sua vida cor-de-rosa e de ouro, as menininhas que adoravam escutar-me recitando García Lorca, a Europa mediterrânea, os iates, as lanchas-automóveis, as ações preferenciais, as mansões que eram museus, a Pasárgada do poeta. Enfiei-me num avião e caí, como do céu, na pasmaceira da minha vida que outrora teria sido um festim. 26
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