MARANHÃO, Haroldo. Flauta de bambu. Rio de Janeiro: MOBRAL, 1982. 64 p.
Acontecimento providencial veio pôr termo àquela tentativa de homicídio. No salão trovejou uma voz que estremeceu as paredes: - ASSUNTA! Cresceu-lhes pela frente um homão sólido e grisalho - Dom Enrique Garci– laso Selgas Avellaneda -em pessoa! Sua palavra dura ressoou, operando o milagre de afrouxar-se o abraço maldito. Livre, meu impulso primeiro foi chispar do local, até porque sabe lá como o cavalheiro conceberia minha presença em sua casa, comicamente agarrado à mulher, que me ensopava o paletó de lágrimas. Não fugi; e não fugi porque forças me faltavam. Mas o que mais desejava era sumir daquela mulher e daquela casa. Foi quando o próprio Dom Enrique, tomado de fulminante palidez, também a mim em prantos se atracou! Ambos, marido e mulher, bezerralmente choravam sobre os meus ombros. Era demais, era demais. O mínimo de hombridade que me restava estourou diante daquele ridículo drama de circo: larguei um palavrão no bom vernáculo para deixar claro que não se aporrinha assim um baiano. E ao desvencilhar-me das lamúrias - eu mesmo é que acabei me aparvalhando. Tremi (confesso: tremi) diante de um retrato com o já referido chapéu de feltro . Compreendi então e só então: eu encarnava (nariz, testa, bigode, olhos) o filho morto do casal. Outra coisa não podia ser. E realmente era. Um sósia exato, conforme depois aferi compulsando os álbuns fotográficos da famt1ia. Finda aqui minha aventura em Buenos Aires. Não sei se interessaria mais ao leitor saber que vivi a partir de então dias únicos de um filho de paxá. Naquele dia mesmo foram buscar-me as malas no hotel e aninharam-me num quarto de príncipe das mil e uma noites, defronte de cujo vasto espelho cheguei a duvidar se seria eu mesmo ou se seria o outro. Basta de revolver essas lembranças, que em lenda um dia se converterão, para dar o que contar em noites felizes, ao pé de lareira imaginária, aos filhos e netos ao redor. 24
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