MARANHÃO, Haroldo. Flauta de bambu. Rio de Janeiro: MOBRAL, 1982. 64 p.
Fogem-me ponnenores, usurpados pela má memória e pela emoção mais que compreensível. O galeto al primo canto recebeu o convite como um primeiro prêmio de loteria. E deixou levar-se e deixou embarcar-se num longo e, é claro, negro automóvel que depois viria saber tratar-se de um dos seis que serviam à família Selgas Avellaneda. Hoje, não tenho motivo para omitir o nome ilustre da excelentíssima Senhora Assunta Selgas Avellan~ da, à ilharga da qual no carro se aboletou, assaltado por desencontrados pensamentos, o mais aflito, mas também o mais jubiloso dos homens: eu! Cabe intercalar urgentemente um parêntesis, para ressalva do bom gosto do autor. Explico-me: a certa espécie de leitor, poderá ocorrer a idéia de que se procura aqui reeditar anedota de museu: fonnosa e cheirosa senhora -convida o adolescente magralhão para exibi-lo (nu!) aos filhinhos enjoadi– nhos, mostrando-lhes o que irá acontecer se não comerem as papinhas e os leitinhos que mamã manda fazer e para os quais os filhinhos nevropatazi– nhos enfarruscam os narizinhos, reéusando-se a comer. Maciamente entrou o automóvel num parque folhudo e florido que circun– da a mansão dos Selgas Avellaneda. E mal o carro estancou, precipitou-se um flexível mordomo de libré. Era sizudo homem, desses que se fundem aos mobiliários dos palácios ricos, tão ou mais necessários que a tapeçaria trazida da Pérsia ou o canapé de mogno e seda da era dos luíses. Tipos ' como esse a gente percebe esgueirando-se pelas páginas dos romances, sussurrando, transportando baixelas, vestindo e desvestindo sobretudos, entregando um chapéu. Deles ninguém espere uma gargalhada, os mordo– mos não riem nunca. Podem eventualmente sorrir, mas é raro. Um mor– domo curva-se e concorda. Fico em dúvida se foram os romancistas que o copiaram ou se foi ele que se enfiou, como as mãos se enfiam nas luvas, no modelo europeu estabelecido pelas famílias de linhagem centenária. A ver– dade é que vi, apalpei quase para certificar-me de que respirava e andava esse mordomo de libré, o mordomo dos Selgas Avellaneda, que se inteiriçou como um poste à nossa passagem, minha e de Assunta, deusa e rainha do solar para mim irreal. Não escrevo que tudo me parecia um sonho, porque estaria incorrendo em expressão barata, incompatível com a pompa e a circunstância. A um passo da porta principal me achava e a menos de um passo da aventura mais absurda, essa aventura minha em Buenos Aires. 22
RkJQdWJsaXNoZXIy MjU4NjU0