MARANHÃO, Haroldo. Flauta de bambu. Rio de Janeiro: MOBRAL, 1982. 64 p.
BELEZA NOFIM DA TARDE Existe ainda um resto de amor no velho mundo calcinado. De tal sorte a gente se anestesiou, entre homens que não riem nunca, vociferam, que espanta e oxigena o coração defrontar um ato de beleza, afinal tão. simples. Nossos olhos já se mostram doídos de presenciar a repulsa entre as pessoas e uma espécie de vergonha de se comover diante de momentos de beleza. Há pouco, os jornais exibiram uma fotografia encantadora realmente: um velho cidadão fardado, o mais severo marechal da República, curvando-se para colher uma flor. Inegavelmente um gesto amável do marechal, porque em verdade há muitos anos ninguém se detinha assim para apanhar uma flor. Pergunto-vos: conheceis um homem, um sequer, que beba da água de um regato com as mãos em concha? E ainda há regatos? Um homem, ao menos um, que repouse a vista no céu no instante rapidíssimo do crepúscu– lo, para surpreender a luz inaugural da primeira estrela? Debruçado estava eu na minha janela e era um fim de tarde. Escuso-me de reconstituir essa tarde P.m cores e volume, pois necessitaria de tintas de sangue e ouro, que não suo em minha paleta, nem poderia fazê-lo senão utilizando finos pincé , de que não disponho. Importante é reportar o episódio, de resto bem singelo. Vi o casal maduro na sua varanda. Apreciava ele um charuto, distraindo-se em ver as pessoas que passavam. A sua velha dele se acercou sem que ele a pressentisse e aprisionou-o num abraço. E assim deixaram ficar-se, as cabe– ças entre si reclinadas, olhando a tarde que sumia. Em paz. Foi um minuto de beleza naquele começo da noite. Não quero esquecer de aludir ao cachorro. Havia um cachorro, negro cachorro, amigo com certeza dos dois namorados. 19
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