MARANHÃO, Haroldo. Flauta de bambu. Rio de Janeiro: MOBRAL, 1982. 64 p.
e cuidados. Da Europa mandou vir cordas, pedais, lâminas de marfim e ingredientes outros. Enquanto aguardava a encomenda, aplainou tábuas, poliu-as, recortou as teclas, concebeu os martelos e o tampo. Alguns anos gastou na empresa, mas proporcionou-se o gosto de acabá-lo. Também, só fabricou um piano, em cujo frontispício afixou pequeno cartão de metal com o próprio nome - MELO, que bem não soa batizando pianos, como Pleyel, por exemplo. Toca-se num Pleyel, mas que pianista arriscaria sua reputação tocando num Melo? Como disse, metia-se em curiosos projetos, únicos. Que me lembre, fabri– cou um guarda-chuva de seda, uma bicicleta, charutos baianos. Enfastiado de dar emprego às mãos, acudiu-lhe um dia desembrutecer um bruto. Seria a sua obra-prima, trabalho de paciência e caridade. Não sei através de que expedientes, trouxe o Melo para casa um índio nu e cru, que andava pelos dezesseis anos, embora externamente homem pronto. Dispunha-se o obsti– nado obreiro nada mais nada menos a isto: transformar o bronco num letrado. Passou a consumir dias inteiros, à volta da mesa do jantar, tendo pela frente o selvagem, a soletrar, rabiscar, insistir, persistir, possuído de determinação anormal. Uma tarde, o índio exasperou-se. Agarrou o Melo pelos botões do pijama, deitou-o por terra, cavalgou-o e infligiu-lhe surra que deixou o desgraçado mestre tão estarrecido quanto equimosado, a cara vermelha de taponas, os ossos moídos, o nariz esborrachado. O bruto surrou o Melo e fugiu para o mato, horrorizado talvez com semelhante homem, que se obstinava em repetir-lhe palavras monótonas. A partir de então, perdi de vista o inventor, que soube viver acionado por estimulantes sensações, numa cidade presidida pela mediocridade. Minha imaginação tem vôo modesto para idealizar em que assuntos andará meten– do-se ele. Aventuro-me a palpitar que ande a distrair os olhos pelo mundo cósmico, fabricando luas vermelhas, quem sabe? Também impossível não será que justo neste momento esteja torneando o corpo, as bordas e a asa de um urinol de lou~a portuguesa. 18
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