MARANHÃO, Haroldo. Flauta de bambu. Rio de Janeiro: MOBRAL, 1982. 64 p.
DASDORES Estávamos no cinema, e a sessão ia pelo meio, quando a menina pediu licença e sentou ao lado da minha mulher. O episódio não chegou a cau– sar-nos espécie. Naturalmente estariam os pais ali por perto e a criança achara de ocupar poltrona escolhida pelo seu capricho, como gente grande. Isso acontece. A dedução foi obra de segundo, não turbou o fio da história colorida. Seria até banal o incidente, e aí morreria, não sucedesse o que veio suceder. Bem, em dado momento a menina tomou nas suas a mão de minha mulher, retendo-a num sanduíche meigo. Já começava o fato a ser inusitado, mas às crianças não se recusa o obséquio de um gesto de aten– ção. Ficaram as mãos, portanto, aninhadas até a fita acabar, quando ambos lhe festejamos a cabeça de anelados cabelos, à guisa de despedida, e cuida– mos de sair. Íamos justamente a trocar impressões sobre a menina, quando a pressentimos ao lado. Ainda lhe dirigimos mais um sorriso e com certeza a teríamos logo esquecido, se na rua não lhe percebêssemos de novo a presença. Já as pessoas se dispersavam, de modo que dúvida não havia: a menina estava só. - A mamãe me largou e foi embora. Eu quero ir com vocês. Inda mais essa! Ficamos na expectativa de que o responsável surgisse. Não surgiu. Retomamos à sala de projeção e estivemos a exibir a garota pelas imediações de onde estivéramos, na esperança de que se levantasse o pai, cu a mãe ou quem quer que fosse. A operação resultou infrutífera. Volta– mos à rua, onde com toda a certeza estaria o pai aflito. Nada de pai aflito. Ninguém, aliás, aflito. - A mamãe foi embora e me deixou. As crianças geralmente sonham na garupa de suas próprias fabulações, de modo que nos recusávamos a dar crédito à história da menina, que se 15
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