MARANHÃO, Haroldo. Flauta de bambu. Rio de Janeiro: MOBRAL, 1982. 64 p.
Explodiu na rua um alumbramento. GALERA DEMARES ANTIGOS Os médicos interromperam seus diagnósticos e vieram com os enfermos debruçar-se à janela. Os dentistas silenciaram os motores do seu malvado ofício e sustaram no ar os ferros que obstruem, extirpam, reimplantam. Para geral espanto, os comerciantes frearam os seus faturamentos. Estagna– ram os automóveis, os caminhões, serpente inanimada (de aço), sem que ninguém se impacientasse, premindo as buzinas para revitalizar o tráfego. Houve um amortecimento unânime das profissões, um colapso das máqui– nas, sufocamento, embriaguez, entre os que ":inham e iam pelas calçadas. Emudeceram as mulheres, calando vãs palavras, atingidas elas também pelo êxtase. Os homens mais distraídos deixaram ficar-se, o olhar inquieto, como se um mágico os tivesse tocado, roubando-lhe voz e movimentos. Instaurou-se um clima de domingo em plena rua comercial, há pouco sacudida de febre, de neurastenias, de cansaço. A aflição dos apressados amainou, como se houvessem cessado as razões de sua pressa. Severo cône– go algibeirou um livro santo e imobilizou-se, negra estátua, compridamente cismando, que se diria defrontando obra pagã iluminada de beleza. Mentiria se informasse que os pássaros recolheram as asas e calaram seu canto. Nem o sol brilhou mais ou brilhou menos. A brisa também não intensificou ou abrandou o compasso de seu galope. Não aludo às flores, pelo motivo obvio de que na rua flores não havia. Quero dizer que pássaros, sol, brisa não chegaram a comover-se pelo episódio que sucedia ao longo da calçada. A beleza é acontecimento de alguma forma incorporado à paisagem. Mas não se tratava da beleza simplesmente, mas de componente incaptável nela fundido em comunhão de sonho e carne. Não a mera evidência de longo, 9
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