MARANHÃO, Haroldo. Flauta de bambu. Rio de Janeiro: MOBRAL, 1982. 64 p.
riam comuns até a metade da noite. Ia a cinema, a teatro, jantava fora, namoráva, visitava, era visitado. Depois é que era! Bem, no começo foi horrível: a madrugada parecia-lhe muito mais comprida do que é e mortifi– cava-o, crucificava-o. Sendo por feitio indisposto à boêmia, não obteria portanto evasão no caro esporte. Acabou firmando-se neste propósito: usaria as horas da insônia lendo metodicamente os livros do seu agrado. Foi o que fez. À meia-noite mergulhava num banho momo, servia-se de refeição sumária, biscoitos, leite gelado, suprimia o cigarro e lia sossegado, tomando notas, até pelas cinco da manhã. A essa altura, pouco antes ou pouco depois das cinco, é que o sono comparecia e sempre pesadamente. Rápido deitava-se para despertar quase em seguida, às seis e meia. Curioso era isto: levantava-se disposto, perfeito, como se houvesse aproveitado um sono de dez ou mais horas. Isso todas as noites, todas as noites invariavel– mente. Quando o conheci (pernoite de emergência, vinha de Nova Iorque e ia para o Rio) hospedou-se no apartamento de um parente, amigo meu. Este não sei por que farejou mistificação ou exagero na história do insone. E dis– pôs-se a apanhfrlo de surpresa. Manobrou o despertador para as quatro da madrugada e quando este trinou atirou-se para o living, onde estava apo– sentado o hóspede. As luzes conservavam-se acesas e o nosso homem lia distraído velho exemplar do The National Geographic Magazine. Sua cara não era a de quem tivesse cochilado, nem que desejasse cochilar, quanto mais dormir. A história é essa aí, enxuta história. Ela saltou-me à lembrança, neste momento em que meu tempo parece tão veloz e sem valia, os livros, tantos, fechados, que não consigo ler. Tenho muito medo de desejar para mim essa insônia sem cansaço. Mesmo porque não cheguei a perceber se se considerava feliz ou infeliz. Uma cousa ele pareceu-me à primeira vista: homem trancado, de usar palavras só as necessárias. Mas por aí nada a concluir, que indivíduos há também assim, e nem por isso deixam de dormir, todas as noites, sono de bispo ou de criança. 6
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