MARANHÃO, Haroldo. Flauta de bambu. Rio de Janeiro: MOBRAL, 1982. 64 p.
PARALER ANTES DEDORMIR Não saberei dizer se seria feliz ou infeliz. Pelo menos, ninguém lhe percebia nos olhos aviso de tristeza. Na aparência mostrava-se homem até banal, embora denunciasse vistosa erudição, colhida volume após volume, deva– gar. Devo ter mencionado, ao largo da conversa que mantivemos, qualquer cousa com respeito a sono ou insônia. A alusão arranhou-o como um alfinete na pele. Houve silêncio rápido de constrangimento, que ele inter– rompeu: - Vou fazer-lhe uma pergunta: o senhor gostaria de dormir menos para, digamos, dispor de mais tempo para ler? Quero dizer: se nas vinte e quatro horas do dia, só tivesse necessidade de uma hora apenas de repouso - gostaria? Não recordo minha resposta. O que não posso é esquecer a história que contou. Para resumir: confessou-me que dormia uma hora e meia nas vinte e quatro horas! Nada mais. Essa hora e meia alimentava-o; e bastava-lhe. A princí– pio, quando se manifestou a doença, consultou médicos, foi à Europa, esteve nos Estados Unidos, ouviu psiquiatras, neurologistas, professores, um Prêmio Nobel. Seu caso foi discutido .nas clínicas mais acreditadas. Nada conseguiu além de tomar-se personagem de aulas e tratados. Fosse um fraco homem e teria dormido logo de uma vez, mas semelhante solução horrorizou-o. E achou preferível dispor as coisas de modo a apro– veitar-se da doença, estabelecendo disciplina para a sua insônia Morava num oitavo andar sobre a Praia do Flamengo e era diretor de indústria têxtil, o que explica ter podido gastar um galpão de dinheiro apenas para saber que os melhores médicos não passam às vezes de devota– dos enfermeiros, devotados, mas enfermeiros. As horas do seu dia transcor- 5
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