MARANHÃO, Haroldo. Flauta de bambu. Rio de Janeiro: MOBRAL, 1982. 64 p.

OúLTIMO PASSEIO DOBIBAS Não me agrada mexer nos assuntos chamados do além. Sou católico e cauteloso, mas sempre não deixa de sobressaltar a possibilidade de crescer– nos um fantasma pela frente, do qual não se pode fugir porque os pés logo-logo adquirem o peso do chumbo. Enfim, nem figurante sou nessa história que me proponho simplesmente passar adiante, sem endosso nem aval, mesmo porque de sua legitimidade só posso afirmar que seu personagem é pessoa de tomar-se a sério. O episódio ele costuma c<;mtar emociomidamente. Precisa dizer-se mais? Foi há muitos anos. Ainda rolavam na cidade bondes elétricos. Calves Bu– lhão, eis nosso homem. Sua boêmia era honesta boêmia, consistindo neste esporte simples: passear na viagem do último bonde, dose barata de cal– mante, com que penteava os nervos e atraía o sono esquivo. Antes de embarcar no bonde, bebia um chope. E quando desembarcava tomava outro, este a goles pequenos, virgulados de rodelas de salame, para confor– tar o estômago até o café da manhã seguinte. Ocupava o último banco e abria o paletó, afrouxava a calça, descalçava as botas e no encosto estendia os braços, oferecendo-se esse relaxamento para melhor gozar os quarenta minutos do passeio circular. Conhecia de cumprimentar todos os passageiros habituais, e do motorneiro até fizera-se amigo, a ponto de se visitarem e trocarem almoços. Calves Bulhão finnou também camaradagem com um contador do Banco do Bra– sil, lgnacio dos Santos Bibas. Bibas alcançava o bonde a meio do percurso e na esquina da rua onde mantinha teúda e ~anteudamente certa frutinha silvestre, que lhe prodigalizou exatamente meia dúzia de filhos, compensa– ção exagerada para a esterilidade da legítima, bela mangueira, mas sem mangas. Preferia Bibas o primeiro banco, no centro do qual se instalava derreando o cansaço. Trocavam acenos de boa-noite; não trocavam mais

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