CELINA, Lindanor. Breve sempre. Belém, PA: Governo do Estado do Pará, 1973. 167 p. ISBN (broch.).
- Não conheço a alma de um gato em Amsterdam. O Peter mora em Deurne, no interior (ter de dizer-lhe o resto), e sei lá se ele me quer, se não ficaria furioso, talvez me mandasse de volta, feito o teu hindu. Rosto da outra se fechou, era uma ferida, o queixo cerrado, um ódio a Thomas, e com isso a certeza de não mais o ver, remexer essa ferida, Mariângela não devia ter dito isso, mas Laura não se concede essas fraquezas, ela só diz, contente por descobrir na amiga aquele irmanamento: "Vês como é tudo a mesma corja? Todos capazes da mesmíssima crueldade?" - alegriazinha ruim de constatar isso, a amiga também repelida pelo padre, Laura debochava, em tom amargo: "No fundo, minha velha, não passamos de duas escorraça– das" - porém os olhos inchados da outra lhe faziam não propriamente uma pena, compreendeu que agia com de– selegância, isso não, e já conserta, já vai voltando por um atalho: - Mas nós estamos por demais negras, credo. É este quarto que nos põe assim, abre as cortinas, abre, bem, me mostra a cara desse dia, mas que beleza!, o que eu perco ficando o tempo inteiro a dormir, o que eu perco do verão parisiense, eu que só conheço a bem dizer as noites. Os castanheiros rebrilhavam ao sol a folhagem tenra e viva e efêmera. Verde efêmero, efêmero revérbero, sabiam disw, a consciência nítida tiveram naquele minuto, olhan– do o dia lá fora, o sol nos castanheiros, sol entrando pelo quarto, Paris cintilando ali, a dois passos delas, elas e o transitório verão, as duas se olham, foi um minuto só, ambas no quarto, e não precisou uma palavra, era já um adeus que diziam nesse olhar, adeus uma à outra, ao que Paris lhes dera em alegrias, desgosto, solitude, tudo, tudo, vinha marcado da brevidade daquele verão. Mas além dessa consciência (engraçado, não proferiam palavra, mas uma sabia muito bem o que a outra pensava), e aquele foi talvez o momento que mais as aproximou, nos meses em que partilharam daquele quarto, daquele leito, as duas, na certeza do fim para logo mais, outra certeza também - e isso era, pesar de doer tanto a ambas, era o que res– taria, o que emprestava valimento a tudo, quando elas não mais fossem ali, e naquele lugar outra gente habitasse, o outono envelhecesse as folhas e o inverno despojasse os castanheiros da glória desse verde - algo haveria de ficar para sempre, enquanto elas vivessem, mesmo longe 82
RkJQdWJsaXNoZXIy MjU4NjU0