CELINA, Lindanor. Breve sempre. Belém, PA: Governo do Estado do Pará, 1973. 167 p. ISBN (broch.).

terceiro, a janelinha parece uma v1g1a de bordo (dali se vê todo o Bulevar Pasteur), uma vigia de bordo (quem lhe dera estar num navio, ser uma outra mulher, uma dessas ricas que vivem nos transatlânticos, o oficial de bordo, o mais charmoso, lhe segredando coisas, perante uma lua, no convés), contanto que Bete não lhe diga "regarde un peu les autres", nem lhe mostre as varizes. fsso não. Angela põe a mão no braço da outra, a voz lhe saiu a custo: "Depois falamos, vou apanhar um café." "Mas ao menos almoçaste?" "Sim, na Aliança." "Com o chinesinho?" Não, o Cheng, desde o fracasso nos exames do professorado, andava sumido, raça mais estranha, há semanas desaparecido, de repente, um cartão de Bruxelas, o do menino urinando, e uma só frase: Bonjour. "Ele anda pela Bélgica, procura um emprego, o embaixador do Cam– boja parece que o levou, assim ouvi contar, não sei bem." Desce, vai ao bar do meio do quarteirão - não ver Madame Arlette, frios olhos verdes que lhe devassariam o rosto desfeito, logo imaginariam um motivo, ela seria talvez o assunto do almoço, todo o grupo reunido sob a presidência de Madame, rindo e comendo salada, bebendo vinho, o cheiro do peixe de forno, pequena festa que inventavam duas vezes por dia, isto era bem francês, converterem o comer numa cena alegre. Se a vissem, sem dúvida se divertiriam em adivinhar qual o motivo de sua angústia: "Mas que que ela tem, a brasileira do quarto andar, repa– raram a cara que tem hoje?" Bete a prevenira: "Não te fies nela, não lhe contes nada, é uma cobra." Mesmo suas conversas, suas escapadas com o velho, Deus o livre Mada– me soubesse, ele lhe pedia que não, tinha-lhe medo? Vai ao bar, traz o café quente para a amiga, entra pela porta lateral, "não me vejam", ouve os risos, os co– mensais, sente o cheiro bom da comida, o vinho nos copos: "Salut, salut", gente que fazia festa duas vezes por dia - mas esse hábito, foi o verão que o trouxe, dantes comiam cada qual no seu quarto, agora são festejos, principalmente à noite, amam cear na terrasse do hotel, debaixo dos cas– tanheiros, celebram o verão como uma festa pagã, com vinhos e viandas, um rito novo. No seu país, de sol quase perene, as gentes nem se lembram disso, comer em homenagem ao bom tempo, assentarem-se à terrasse das casas, aos grupos, para jantar, erguer brindes. Era do verão o milagre. Nas ruas, o parisiense mudava. Ninguém 78

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