CELINA, Lindanor. Breve sempre. Belém, PA: Governo do Estado do Pará, 1973. 167 p. ISBN (broch.).
o quê? Será que participa, real, no seu desgoto, ou é por– que nunca viu ninguém sofrendo por um padre, deve ser, isto é novo para ela, mas será só isso? Ângela se volta, um pudor, isto não, aonde nos levará este mísero amor? Não é o que quero de ti, Laura, só uma palavra, uma cantiga, me conta uma coisa tua, tens tanto viver diferente, fala-me do Baden, do Feijoada, ou mesmo do Crayse Horse, mas não me encares desse jeito, esta dor é minha, sê minha irmã por hoje, mas não me devasses com tua curiosidade implacável, nem este cautério, este dói demais. "Bichinha, tu estás chorando? Vem pra aqui, me conta como foi ou, se preferes, falemos de outra coisa." "Sim, Laura" - ela se vem de detrás da cortina, Laura guarda ainda um ar maroto, mas de repente podia assumir essa coisa maravilhosa, tornar-se de súbito irmã da gente, pena aquilo não durar, ela se vigia, não se concede, se tranca, se economiza, no propósito de só receber e não se dar, não se gastar, mormente agora, depois do hindu. - Senta pra aqui, vem para perto dessa outra esmo– lambada - moralmente esmolambadas somos as duas, hein? (volta-lhe o ar moleque, mas um amolecado sério) E se tomássemos um pileque? Um daqueles, de cair, dançar na rua, sermos presas, quem sabe isso nos salvava. - Me conta o que você fez ontem - Laura aí muda de cara: - Ai, que não presto mesmo, bichinha, tu soubesses onde eu fui, podia ter te levado, eu não valho um caco, Mariângela, não sei como tu me aturas (agora é dessas penitências?). Pois fomos, eu e o italiano, o diretor de filmes, adivinha onde? A Amália Rodrigues. Vês como não presto? A coisa que mais tu querias, e na hora em que mais precisavas, te larguei, sozinha neste quarto, vês como _sou? Sou uma merda, Ângela, estou podrinha - acendia o cigarro - me abre essa cortina, ou não queres, preferes o escurinho, te dói o sol por testemunha, eu sei, estás no poço, é quando a gente quer mais e mais se embiocar, até o sol faz mal, e a alegria dos outros é como um tabefe. Conheço destes bocados, amiga velha - sentava-se, viva, viva -, o pior, Ângela, e isto não sabes, mas fica desde já ciente, o pior é que o tal calejamento não existe. Olha para mim: ninguém mais blasée, ninguém menos disposta a abrir o fecho-éclair da couraça, entretanto, aquele filho da puta do hindu fez de mim o que fez. Sofri, e sofro, 76
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