CELINA, Lindanor. Breve sempre. Belém, PA: Governo do Estado do Pará, 1973. 167 p. ISBN (broch.).

\ Naquela manhã pensou em ir à Praça dos Vosges. Foi, sem outro intuito senão o de rever a praça, o bairro, amava aquele pedaço de Paris. Um estrangeiro, um russo, lhe perguntou: "Poderia me indicar a casa de Victor Hugo?" "Victor Hugo? Aqui?" "Sim, é nesta praça, mas não encontro, só dou com resi– dências particulares, me sinto acanhado, esses franceses me recebem com uma cara. E não ensinam, sabem, e não ensinam." Acham a casa, passei por aqui umas poucas de vezes, não imaginava isso. A mania de querer se extraviar na multidão, não fazer perguntas, o horror a parecer turista, é isso, perco coisas. Esta casa, este passeio, deveria vir com Peter, não faz mal, voltaremos, vale a pena, teremos dias e dias para descobrir outros cantos, lugares que no tempo das aulas não pudemos ver. Mas como esse Victor Hugo era um andejo, como ambulou por esse mundo, como arrebanhou coisas - os jarros da China, enormes, e quanta catrevagem. "A cama, o travesseiro, são os mes– mos, absolutamente autênticos - diz o guarda - é o seu leito de morte." Há um cordão protegendo a cama, uma reinação deitar a cabeça naquele travesseiro. E a carta que ele escrevera à sua amada, palavras que lhe dizia: " ... quando este amor não for mais que cinzas, isto dará testemunho deJ.e ... " Mortos os amantes, ficaram as pala– vras. Peter, guardarei aquela carta, "votre corps, quelle beauté" - onde a guardarei que outros olhos (Fausto?) não a devassem. Ainda lhe vinha (cada vez menos, mas ainda lhe vinha) a consciência de sua duplicidade, seu drama, noiva, sem o direito, agora mais que nunca não tens, de romper com Fausto. A um outro que não fosse vítima, não tivesse sofrido o que sofreu, tão fácil dizer: "Não me caso mais com você." Mas então pensa bem, vê bem o que fazes . Peter virá, quem sabe o que decidiu? Se largasse a idéia de ser missionário, não mais fosse para a Africa, ficasse por causa dela, ainda assim. . . não se podem casar, a menos que deixe tudo. Isto não és tola que acredites, a vocação nele era algo existencial, embora tivesse posto na carta uma força que ela jamais lhe sus– peitara. Tratava-se ali de um outro Peter, um impulso novo. Mas abandonar tudo por ela? Nem és criança, para te embalares nesse sonho. Sossega, sossega, melhor mes– mo é contar com pouco. Vem te ver. Não se conformou 159

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