CELINA, Lindanor. Breve sempre. Belém, PA: Governo do Estado do Pará, 1973. 167 p. ISBN (broch.).

Dos vizinhos, só os argelinos haviam ficado, e a dona do armarinho, cuja irmã estava morre-não-morre, e que já se preparava para receber os dois sobrinhos (sabe, eles não têm mais ninguém no mundo). A doceira da esquina da Falguiere com o Pasteur, que rezava por ela em dias de prova e tanto a gabava aos fregueses: "olhem só como no Brasil se estuda", e, para a filha, "Te mira nesse exemplo, Mademoiselle é noiva mas estuda, faz Sorbonne e Aliança, vês?" - também esta se fora, com toda a família. Suas conversas de quarteirão, minguadas, agora. Restavam as conferências das cinco da tarde na Alian– ça, ia mais por um hábito, mas o pátio, as escadas, tudo lhe fazia um mal, ali conhecera Peter, ali começara a amá-lo. E as cartas? Veio uma do Brasil. Decepção ante o envelope verde-amarelo, letra dele, de Fausto, eu não presto mesmo, Fausto, que me dizes, estás livre? Que horror. Só há uma questão de dinheiro, agora? Nada se apurou contra ti? "Desde que receba o que me devem, vou, Angela minha, vou (o calor com que fala na "nossa vida", em "nosso futuro", nem suspeita que tudo isto hoje me apavora, chegar a preferir que ainda estivesse preso, a que ponto chegaste). Mas não diz quando vem. É tudo uma hipótese ainda débil, não vão lhe pagar é nada, não poderá viajar. Mas não é o que afirma: "Havemos de arranjar-nos, não desespere." Desesperada estou, você adi– vinhasse as mudanças por que passei, ah, não venha, não caia nessa, fique por lá! Não vão pagar, um centavo não lhe darão. Mas, e se obtiver um empréstimo e vier, a todo custo? Tudo são tormentos, nem quero pensar nisso, não vem, não vem, só me faltava isto. Afinal, carta de Peter. Abriu-a tremendo, decerto são conselhos, muitos, doutrina-me, tenta me apagar da mente aqueles dias, a minha loucura. Vai percorrendo as páginas a esmo, não consegue ler direito, vai. . . Aí pelo fim da primeira página, uma frase saltou, sozinha, destacou-se da carta, projetada em relevo: "votre corps, quelle beauté!" - que é isto, mas é dele, ou de Harry Van Mayer, o marido da grávida? Corre à assinatura, não acredita naquilo, es– tarei ficando doida, isto é uma alucinação, só vê as letras de fogo: "seu corpo, que beleza!", mas a assinatura, a assinatura: "Votre Peter" - ele!, então não lhe reconheces a letra, lesa? Estou lesa, sim, é de enlouquecer, que será de mim, meu Deus, ele vem, ele vem!: "Não demoro, meu 155

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