CELINA, Lindanor. Breve sempre. Belém, PA: Governo do Estado do Pará, 1973. 167 p. ISBN (broch.).

inútil qualquer palavra. Não, amiga, não me perguntes nada, só quero tua presença , nada tenho a dizer-te. Dá-me teu riso selvagem, mesmo tuas lamúrias, mostra-me as varizes, tua coragem, disso é que preciso. Me repete quan– tas camas fizeste, quantos sanitários lavaste, quantos cai– xotes de peixe descarregaste à madrugada de hoje no Halles, o pingo de sono que te coube, isso sim, fala-me de teu heroísmo de mãe, te esfalfando por teu môme de mais de trinta anos que bebe e tem ataques, lutas para contê-lo nos ataques, "estou toda roxa, olha só, toda roxa", teu môme a quem juras cravar um punhal no peito, ires em cana, para que cesse tua vida de suicídio, mas tudo quanto te dou, um docinho, uma gulodice, nem comes, enfias no bolso do vestido, para ele; tuas contradições, tua grandeza, isto é que eu quero, me ensina, ou isto não se aprende? Não, Betsabete, não te relatarei o capítulo dos meus vexames. Tanto que pretendi chorar, no trem era só o que pensava. Cadê as lágrimas? A partida de Laura, sem um recadinho, e o velho, também sumido (disseste que está para o Canadá, um amigo o levou, ainda bem), tudo isso desviou meu pranto, estou simplesmente exausta da noite de ontem. A gente tem um limite para chorar, deve ser isso, ultrapassei as porteiras, curtida estou? Curti- . da mesmo não, mas um aturdimento a invade, a cama convidava, o quarto limpo, flores (Bete as pilhou no Halles, como surrupiava coisas - ou lhe davam?; "as mais bo– nitas maçãs para minha Angelá" , ali, no prato verde) . Bete já não mais insiste sobre Peter. Perguntou ape– nas: "Il va toujours en Afrique?" Angela só sacudia a cabeça que sim. "O que significa perdido, para toda vida, é isso" - alegria mal escondida na voz de Betsabete, te regozijas com meu mal, detestas Peter, eu sei, eu sei, foi loucura Amsterdam. Mas quem disse que me arrependo, tivesse de recomeçar tudo, não hesitaria, e o que devo a esse amigo, isso não entenderás nunca. Certo me tras– passou com seu amor feito de renúncia e secura, me torrou como o sol torra uma asa de borboleta . Mas não me arre~ pendo. * * * Incrível como ainda espera. Cartas, naturalmente. Sabe que virão. Mas os dias escorriam, o verão no auge. 154

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