CELINA, Lindanor. Breve sempre. Belém, PA: Governo do Estado do Pará, 1973. 167 p. ISBN (broch.).

mas não se atreve, imagina que ela está mergulhada no livro, o livro é uma defesa, embora não prefira o silêncio, bom o moço ali, a só presença dele, mas não fale, não me pergunte mais nada, vai indagar o que faço em Paris, onde moro, melhor fingir um cochilo, não terá a audácia de me interromper, respeita-me o cansaço. E fecha os olhos, larga o livro, num gesto de abandono, no banco, recosta ainda mais a cabeça, um derreado de quem jâ vai dormir, um sorriso de desculpas, ele meio perdido, contava com a conversinha, talvez uma intimidade, não sabe o que fazer das mãos vermelhas, não é homem de ler, senão lhe oferecia este livro, nem isto deve ser gênero de leitura para um marinheiro, fecha os olhos, ignora-lhe a decepção, mas dormir não consegue, ele deve perceber que ela não dorme, se deu conta de que o evito, daí o ar desconfiado, um quase desamparo, está sozinho, perdeu os parceiros, vinham falando sem sossego, agora não tem mais quem o ouça. A viagem assim decorreu, entre pseudocochilos de An– gela, uma que outra palavra do moço, prestativo, de in– comodar, a cada chancezinha aproveitando para insistir: "Não quer tomar nada?, não prova uma fruta? mas não tem fome, como é possível?" Acabou por aceitar uma tan– gerina que lhe deu já descascadinha, aí ele riu, riu mesmo, visse naquilo uma quebra de seu isolamento. "Se fôssemos ao restaurante, a senhorita não se alimentou desde que saímos de Amsterdam." "Mas é que tomei um bom café no hotel", mentiu, não conseguiu engolir nadíssima, Harry nem insistia mais, sabia-a despedaçada, Harry, descendo a valise de Peter e a dela, assobiava suas árias, mas à mesa, não pôde manter o riso, tudo foi um curto adeus, adeus àquela gente, Harry ainda ofereceu: "Se não se O:f>Õem, levo-os no meu carro até a estação." Angela atalhou viva– mente: "Nunca, o senhor é por demais ocupado a essa hora", seria o cúmulo (não quero testemunhas nesta des– pedida, bastou Paris, agora só ela e Peter, ninguém mais). Quando o trem ia chegando a Paris, o rapaz pergun– tou: "Onde mora?" "No Montparnasse." "Deveras? Então posso levá-la, depois fico na estação." Aceitou: "obrigada, moço, obrigada", tem quase um remorso de tê-lo tratado com frieza, fingindo dormir, sentindo o olhar dele, pedin– chão, olhar dele nas suas pernas, seu desassossegado si– lêncio. 150

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