CELINA, Lindanor. Breve sempre. Belém, PA: Governo do Estado do Pará, 1973. 167 p. ISBN (broch.).
antigos dias de outono, o campo dourado, ele chegando mais o pai, de tardezinha, a foice ao ombro, escorrendo suor, que força, que saúde. A mãe, da cozinha, dando-lhe a bênção, e logo o aviso : "Lavem-se e venham comer, senão esfria, já vou servir." Comia com gosto, ah, o sabor daquelas comidas, para nunca mais. Desde a operação. Coisa tão mínima, uma apendicite, como pode isso inuti– lizar para sempre um homem jovem e cheio de vitalidade? Agora talvez nem possa mais realizar seu maior intento: a Africa. Para isso, só por isso, foi ser padre. Dissessem-lhe que iria ficar se finando numa paróquia em Deurne ou no bolor de um convento mesmo em Paris, teria nunca deixado os campos, a vida alegre que fora a sua, mesmo na toda pobreza? Ainda bem que os superiores não haviam dito a última palavra. A chance da África, embora frágil, subsistia. A prova, sua presença em Paris, para o estudo do francês, que teria de dominar bem, pois pretendiam mandá-lo ao Camerum. Na mesa, o riso dos colegas sobressaltou-o, aperce– biam-se de sua ausência, seu alheamento? Não, troçavam de um outro, um padre de meia idade, gafes cometidas num certo jantar em casa de uma família francesa, essas coisas. Risos espocavam na mesa, de ponta a ponta, só ele não conseguia rir assim. Impossível, para quem padece de uma dor sem tréguas. En'.tretanto, já devera ter-se ha– bituado. A dor era-lhe já uma outra natureza. Não pas– sava nunca, só atenuava, curar, de verdade, não. Mariân– gela nem acreditou, quando lhe disse da presença cons– tante da dor. Como viver alguém, anos, com um sofri– mento desses? Mariângela. Amanhã talvez o receba com um novo espanto, uma reserva, a carta do noivo teria chegado, como seria esse Fausto? Uma carta dele. Rezei tanto para isto acontecer, ele .se libertar, vir buscá-la, casa– rem-se, deixarem-me em paz com meu tormento (se cor– rige) , minha cruz. Senhor, toma nas tuas mãos estas dores, quero me irmanar contigo em sofrimento, serei por isso eleito? Teresa Neumann tinha chagas, estigmas da Paixão; Peter de Vries tem um mal nos intestinos, é muito menos nobre, é ridículo, dor de barriga perene, ridículo. São Francisco de Assis cobria a cabeça de fezes (ou de cinzas?), vestia-se de sacos, amava o risível, venceu o risí– vel, mas, Senhor, uma dor nas tripas, sempre e sempre! Os.• arrotos 1 ter de encobri-los, disfarçá-los, Mariângela 12
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