CELINA, Lindanor. Breve sempre. Belém, PA: Governo do Estado do Pará, 1973. 167 p. ISBN (broch.).

mundo quer saber, Harry estaria morto por ouvir aquelas coisas, veria seus olhos luzirem cúmplices, como quando na rua das mulheres. Sim, foi heróico de sua parte, um que traía a mulher a cada passo, que a repartira com outros, moral esgarçadíssima (só não me arranje filhos, isso não), que fizera o maior escândalo porque ela não sabia da pílula, homem liberto, respeitara-lhe o segredo, dominara a fome ciumenta de saber. Amanhã vou ter de enfrentar tudo isso. Peter terá de vir aqui. Não haverá canto no mundo onde possamos estar os dois sem que olhos estranhos nos devassem? Olhos julgadores. Em Paris, Betsabete, sua moral especialíssi– ma: "C'est de la merde ton curé." Só Laura insistia: "Larga de ser boba, taca brasa nesse padre." Laura apro– vara a viagem, mas nisso não havia propriamente com– preensão, Peter para ela seria mais um da "corja", um de quem era preciso desfrutar tudo e jogar fora como chupa de laranja. "Vai, dá-lhe em cima, põe abaixo aquela hipocrisia, no fundo está doidinho que o arrastes para a cama, não me iludo, o que ele quer - e talvez nem o saiba, o burro - é isso, é te entregar a donzelice, só não se atreve, tu terás de arrancar-lhe as calças, e pular-lhe em cima." Laura, que vulgar, aquilo doía, tão em desa– cordo com Peter, que, desde o primeirinho dia, no esboço do abandono inicial, já se continha, se reprimia, essa foi sua atitude sempre, "não devo amá-la, não quero, não devo". Só um momento (e como não adivinhou?, isto não se perdoará jamais), no final, na despedida, Bete rondando pelos corredores, mas eles estavam muito além daquele hotel, daquele quartinho quase miserável, nesse minuto, sós, os dois no mundo, chorando um nos braços do outro - só um momento ele foi seu, poderia ter sido seu, ela não o soube. Depois, as comedidas cartas, e a voz dele, ontem, ao telefone, encobrindo uma censura: "É você, Angela (mas claro que é você, maluca, quem mais?)? que lhe deu?" E os argumentos para convencê-lo a vir, a quase ameaça de ir até lá, a quase chantagem. Amanhã estará aqui. E se não vier? Se aquilo não passou de uma piedosa mentira, até que ela se desiluda e volte? Antes ainda estivesse com o outro, pelas ruas, veriam o amanhecer nalguma buate, dançando, bebendo, ela não ficaria só com seus tormentos, a dúvida nova, telefonasse agorinha a Deurne: "Você vem mesmo amanhã?" Olha o relógio: 135

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