CELINA, Lindanor. Breve sempre. Belém, PA: Governo do Estado do Pará, 1973. 167 p. ISBN (broch.).

por um tom, que tom? Angela examina-lhe o rosto belo e nutrido, terá ciúmes, esse cínico? Seria bom talvez fazer vibrar aquela face por um sofrer, a expressão que lhe conhece é o alegre cinismo, a faculdade de entender num relance as coisas, não se escandalizar de nada, e ainda uma ternura, mas tudo de mistura com o cinismo, o cinismo dominando. Ela adivinha - não era uma certeza, poderia ser um blefe - uma sensualidade, uma fome incrível de prazer, uma capacidade incomensurável de dar e receber prazer. Mas isto não saberá nunca, e é melhor para ti, melhor? Sim, serei alguma prostituta? Pensou em Laura. Cheng: "Não ande com essa puta doida." Laura avaliava, num gesto, o sensualismo de um homem: "Não é de nada." Ou: "Puxa, que macho." Rotulava no primeiro encontro. Conhecer dele a outra face - o sofrer. Como reagiria à dor? Seria passível de um desespero? uma tristeza, oculto pesar que o minasse, cada dia? Sabia-o doce, meigo, capaz de atrair, com toda a corpulência. Angela continua exa– minando-lhe a furto o rosto, ele o pressente. Naquele fim de rua, nas sombras do parque, parou a máquina e, sem uma palavra, tomou-lhe as mãos e começou a cobri-las de beijos, sua boca é macia e fresca, o cigarro não lhe alterou o hálito, mas Angela não lhe dá os lábios, assusta-se um pouco debaixo daquela explosão nova (se não reajo, acabo dormindo com ele, dormir com ele, saberia como era o seu amor - e Peter, amanhã, e Peter?), não, a palavra não serve, explosão, são muitos os beijos e quentes, de uma doçura. Mas persiste em negar-lhe os lábios - por quê? por quê? - ele suplica. - Harry, não, vamos voltar, voltar! - quase gritou. Ele pára, sem deixar de segurar-lhe as mãos. "Voltar para quê, se só temos esta noite, e dentro de uns vinte, trinta anos, no máximo, estaremos todos mortos, dentro de uma caixa?" Está sério, os lábios tremem, contém-se, uma amargura tão antiga se insinua em sua boca, nas coisas que diz: "Mortos dentro de uma caixa, apodrecen– do", dentro de uns trinta anos, no máximo. - Sua mulher, Harry, sua mulher grávida, seu filho (mas não há verdadeira piedade, nem remorso nela). - Bah! - ele se refaz, reage, atira a cabeça para trás. Angela o interroga com os olhos. 127

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